sexta-feira, junho 24, 2016


Lisboa é ainda o pior dos séculos.
Ensinou-te, assim mesmo, o andar ágil
dos vadios de antigamente
este ritmo
seguindo ileso entre as notas sujas que
o vento arranca a cordas feridas.

Algum café e a sua vulgar eternidade
onde sobram figuras de recortar entre
a sede e o tédio.

Do mesmo prato comem deuses,
homens e bestas
,
numa intimidade incrível.

Sombriamente
debruçados, reproduzimos o morse
burilado nestas mesas.
E nalgum canto soluça um acordeão
que conduz uns gestos cegos
e acenos
ao sinalizarmos um perfume solitário
de não se sabe quem.

Truque das obscenas donzelas
que nos puxam para este ballet parado
entre o amor e o desdém:

juras nocturnas
que a manhã não cobre,
a vida secreta que imploramos.

Tens a tua cercada.
Mas, aqui, a corte
é coisa para levar entre meses,
anos, mesmo décadas.

Ensinas as sombras a puxar-lhe
os fios do vestido, revelar-te mais
desse contorno
que vens copiando à mão:

o desenho lento da boca,
lábios enegrecidos
de tanto discutir preços,
e aqueles dois olhos claros
que te parecem às vezes
frios, cobrindo-se já de formigas.

O mundo tem-te aí de castigo
e ouves como chove ainda
na tua infância,
e um vento sem direcção te devolve,
passados anos, ecos já mortos.

Recolhes os papéis e tomas caminho.

A luz gelada dos candeeiros
recorta uns vultos contra fundos
esbatidos.

Trazes a voz uns passos mais
atrás, a maltratar uma canção
enquanto inventa ruas
e te empurra para debaixo das arcadas
onde os capitães do fim
reerguem o seu hotel de grilos e constelações.

De regresso vens a estudar as janelas,
sinais de presença e do mais.

(Há horas no mundo
que pertencem a tão poucos,

a esta raça infalível,
àqueles de nós que já não somos
apenas os últimos dos últimos
mas os primeiros de um por vir.)

Procuras as chaves, encontras e abres
a doce cela onde, enfim, vens bater
com os ossos.
Teu quarto minúsculo,
a cada noite mais estranho e
inclinado
tudo chegado à tua enorme
janela rasgada.

Aqui e ali, moscas e astros
poisando entre os versos do imenso poema
que cobre estas paredes
onde os sonhos
deixaram as unhas e bizarros abecedários
com raízes fundas que trepam
florescem
e as estalam abrindo passagem.

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