Escarro na minha vida. Não me solidarizo.
Quem não faz melhor que a sua vida?
Henri Michaux
Deixa-me apenas isto,
beber a penumbra de um café vazio;
neste balcão onde me inclino
em silêncio
enquanto a sombra de uma recordação
me atravessa o sangue.
Antes que comece a escrever,
que um ritmo me encontre,
me enobreça
e as frases se deleitem, conspirando.
Receio sempre que alguém me veja a tomar nota
destes valiosos segredos de guerra...
Para ajudar a confortar o inimigo.
Mas que inimigo?
A história desleixou-se,
perdeu o gosto e o ardor das batalhas
em que se derramavam
as mais negras sílabas
de sangue. Rebaixou-se a uma era
furiosamente desapaixonada
entre corpos como velhas melodias,
olhares em todas as direcções
e uma saudade estúpida
que só encontra
nomes vazios, a podridão fria dos lugares.
A luz, hoje, demora-se o mais que pode
e deixa-nos a suspeita de que se a apagássemos
o mundo seria exterminado.
Um anjo abandalhado descreve o fim.
Cem vezes o mesmo discurso incoerente,
mas caça imagens prodigiosas,
de uma ternura tão desolada
que espalha em seu redor
um bando de sombras boquiabertas.
Um louco aplaude-o. E é tudo.
Estamos todos mais empenhados
nas lendas que nos enchem os cadernos,
episódios da nossa outra vida,
mais verdadeira.
Deste lado não erguemos muito
mais que uma figura tímida,
fria, fugaz.
A chuva enche mais silêncios,
toca o fundo
antigo das nossas convicções.
Uma folha de jornal bebe
de um charco
o inebriante reflexo que me detinha ali
e o ziguezagueado dos meus passos
segue por caminhos apagados, quase desertos.
Algumas árvores feridas e fontes exaustas,
este cão que na minha sombra vai
desenterrando ossos.
Os grilos cosem à máquina
como desesperados,
mas também o seu esforço é vão.
A cidade desagrega-se docemente,
mal iluminada.
Tudo molhado, escuro,
escorregadio – e eu continuo de pé.
Tantas solidões insaciáveis
acabarão certamente por se cruzar nalgum ponto.
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