quinta-feira, março 24, 2016


Podemos calar-nos todos em uníssono. Um dia destes podemos. Como já fizemos, nem o bico abrimos. Lá fora ouvia-se um grilo coçar as partes num canto íntimo da noite. Silêncio constrangedor como já fizemos para responder a certos golpes mais baixos, resumos a que uns contentadamente se dispuseram, mandando ampliar as suas certezas, afectos, pondo outros de parte – Je ne mange pas de ce pain-là... je préfère le croissant. Fizemos bem e acabou-se. Não tinham mais a quem. Temos aprendido truques com a convivência. Vamos sabendo já fintar os grupos. Venham com as vontadinhas dos autores, tiragens limitadas, coça-me aqui, faz fila ali que eu já te atendo. E um dia eles viram-se… e fez-se silêncio. Já fomos. Por estes dias o Armando veio dizer que está tudo, todos contados, de volta às casernas. Seria uma pena mesmo, depois de tão galharda demonstração de força, presença, toda aquela sombra do mar embarcando-lhe os versos, que triste seria vê-lo de costas. E o dia mundial da poesia veio, veio tanto-tanto que se foi. Deram por ele? Vai-se dando, infelizmente, mas já foi pior. Celebre-se o segundo ano sem que viessem aqueles, eles mesmos, ele, tu, claro, o outro e aquele, apito e cartões, o ar de parvo dos árbitros, sempre, vinham contar-nos a estorinha, dar corda ao brinquedo e querer sentar toda a gente de roda como se desse para um concerto. Certamente, secretamente ainda se hão de telefonar, fazer o gosto às listas, e comparar – este punha que andou o ano inteiro certinho, aquele não, nem na próxima década – sem necessidade de justificar, qual, fazer caso? Pôrra se os juízes lavram as suas sentenças é lá com eles. Estes estão maximamente gabaritados, licença para gozar os seus insondáveis critérios. Se nos juntássemos e me dissesses o que sabes e eu te contasse o que sei, que lindo retrato lhes tirávamos. Mas confiemos que o faziam por essa devoção, as tais qualidades que certos homens transpiram, se sentem no modo como por eles passa o vento, ganha um certo donaire, lá vem dançaricando, como em tempos recuados trazia o cheiro de um bolo que eternamente se cozia no forno da cozinha na mais calma das infâncias. Belas personagens. O padre, o bibliotecário, o médico do coração e o coveiro. Um para tratamentos ao nível da alma, o segunda das ideias, o outro dos batimentos que nos levam por cima da terra e o último compunha-nos um lote, punha-nos a terra em cima como quem puxa um lençol. Este ano nem anuário houve. Zerinho. Soube de umas leituras de poesia nas prisões. Pareceu bem. Ou isso ou mais janelas por onde o mundo passe, se deixe olhar entre grades, subindo a saia no minucioso e atrevido flirt que serve a impressão de que a liberdade ganhou outra fineza nestes dias. Nos caçilheiros também se ouviu poesia, atravessando o Tejo em câmara muito lenta. Tudo isto nos parece naturalmente bom, simples, eficaz. Todas aquelas vidas de ir e voltar pondo de fora um sorriso inútil. Como uma flor. Pareceu-nos tudo muito certo, e bem. É aquela hora que há, uma certa hora que segredam os relógios desta cidade, hora escondida talvez, mas que de vez em quando passa no meio das outras, educadamente, apressada, com uma ideia para uns versos, à margem da folha, do saldo contabilístico. 1946 ou 2016, tem graça toda esta distância que se pôs. Ninguém diria. Olhando-a sobre o ombro não parece assim tão longe. Não diria ontem, mas confundiria tudo nalguma destas madrugadas de constantemente, em Lisboa, com a sua luz distraída, luz lembrando qualquer coisa entre o encanto e a despedida, isto antes ainda de sairmos todos para o meioda rua. Saímos? Mas sim, saímos! Saímos: seres usuais, gente-gente, uns com o novo do Herberto, outros intrigados, outros nem tanto. É bom? É bom, dependendo do que estavas à espera. Esperavas o mais extremo de todos, o mais amado, o mais junto à lírica? Se calhar desiludes-te. Logo me dizes, então. Falamos amanhã, falamos para o ano, que o que interessa então é isso, que amaduremos, mas gente-gente, como dizia, olhos, narinas, bocas. Que mais? Pouco, por estes dias, pouco mais, mas gente pelo menos, e ainda, sempre no meio de nós, um banqueiro, alfaiates, muito poucos, telefonistas já não, caixeiros desempregados, temo bem que sim, ainda uns com os outros, uns dentro dos outros, tossicando, sorrindo, etc, etc. E a poesia com tudo isto, e o mais, um deus para as pequenas e tristes coisas. Parece que, como queria o outro, os raios a partiram mesmo, à vida e a quem por ela segue andando.

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