sexta-feira, março 25, 2016


para que sirvo eu marcado logo pela manhã?
não é toada para os meus ouvidos,
gosto mais de pequenas flores alvas através de enormes gotas de orvalho,
verduras, carne, leite das cabras,
e montanhas, e árvores que se não podem cingir apenas com dois braços de repente,
e despenhadeiros, e gritos ecoando, raça de lobos,
fogos nas noites daqui para cima,
como se move o chão debaixo das danças e do vinho delicadíssimo a toda a volta da língua,
já basta à nascença a porção de terra cercada de água por tantos lados,
sim sim dolorosas flores das ameixoeiras,
fecho os olhos, aspiro o odor revôlto fremindo fundo fundo,
enterrem-me o mais fundo possível,
que eu seja devorado pelas raízes,
pulmões, coração, centro do elemento vivo,
sangue até à medula do ôsso,
sangue às meadas,
áspero tutano:
da água cardada nem o sal nem o rumor sequer longínquo

- Herberto Helder
in Letra Aberta, Porto Editora

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