terça-feira, fevereiro 09, 2016

Escritora, princesa do espírito


Escritora em produção para o jornal "Público" | Fotografia de Miguel Manso





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Se eu fosse verdadeiramente um cínico, como me chama Alexandra Lucas Coelho (ALC), num texto intitulado O desperdício de António Guerreiro (PÚBLICO de 24/1/2016, em resposta a uma discussão que encetei no Ípsilon de 8/1/2016), responder-lhe-ia com ar fatigado, próprio de uma falsa consciência iluminada que avança com uma máscara. E prosseguiria com a habilidade do cinismo, para salvar a aparência de que estaria a refutar os seus argumentos. Semelhante leitura errónea do meu texto, mas não certamente por cinismo, é a que pratica ALC. Sem antes contestar a acusação de cinismo, não há conversa possível. Um cínico subtrai-se a todas as bases sólidas de uma discussão e destitui o significado de todas as coisas, submetendo-as a um efeito corrosivo. O cinismo moderno, que deu origem ao cínico como uma figura social, é uma atitude que, no seu modo de funcionamento, fez entrar a crítica em colapso, corresponde a uma ideologia pós-crítica. Ora, se há uma litania bem audível que se eleva constantemente dos meus textos, é a dos valores críticos, ao ponto de por vezes me caricaturarem pela perseverança numa ideia rígida de crítica, tanto nos seus objectos como nos seus métodos. Por isso, já me chamaram muitas vezes moralista e puritano, o que é exactamente o contrário de um cínico. Tentarei mostrar que ALC é tão eficaz e rigorosa em todos os outros argumentos como na classificação do cínico.
E assim prossigo, negando a existência de qualquer cinismo ao discutir o texto onde ALC denunciava como intolerável a prática da não remuneração dos escritores que “dão o seu tempo a Câmaras, bibliotecas, festivais, centros e demais instituições envolvidas na promoção da literatura” e para os quais faltam bolsas e subvenções do Estado. Tentei analisar o significado deste facto para uma compreensão do estatuto do trabalho intelectual na nossa época (algo que ALC não percebeu a necessidade de fazer, o que a levou a um discurso que serve para justificar a indignação, mas não para analisar e compreender o que se passa), do qual participa não apenas o escritor, mas também o professor, o jornalista, o cientista, o investigador, etc. E, sobre esta questão, devo reconhecer que uma frase do meu texto era pouco clara na sua formulação, dando azo a que ALC tivesse lido nela uma coisa completamente ausente do meu horizonte: que eu estava a acusá-la de nunca ter feito semelhantes reclamações quando era jornalista e fazê-las só agora. Na verdade, o que eu quis dizer é que ouvimos no texto de ALC a sua indignação enquanto escritora e em nome dos escritores, mas nunca ouvimos a indignação da jornalista em nome dos jornalistas, que estão sujeitos a um regime idêntico. O que me levou a levantar a questão de como a condição de escritor é muito mais apta à reclamação de privilégios que, no entanto dizem respeito a todo o tipo de trabalho intelectual.
Aludia nessa breve análise à ideia de uma nova figura do escritor — e do intelectual, em geral — enquanto empreendedor de si próprio e sujeito à lógica neoliberal da “economia política da promessa”, em que a “visibilidade” é um precioso capital. Limitei-me a analisar, usando conceitos que fui buscar às ciências sociais. Analisar e descrever é tentar compreender, não é manifestar adesão: nunca defendi que os escritores não devem ser remunerados e que não devem ter direito a bolsas e subvenções. Fui estritamente analítico, analisei o funcionamento de um sistema, e foi em função dessa análise que conclui que ALC entrava em contradição ao querer o “melhor dos dois mundos”: por um lado, o mundo em que as regras do trabalho intelectual seguem a lógica do empreendedorismo neoliberal, regido pelas regras da economia da promessa, que tem no seu centro o valor da “visibilidade” (é nesse mundo, e só nele, que se dá actual proliferação de acontecimentos destinados a “promoções”); por outro, o mundo onde o escritor preserva uma velha ideia de autonomia e, além disso, é remunerado pelas suas participações. A contradição que eu aí aponto é traduzida por ALC nestes termos: “A versão de A.G. é: tem visibilidade, já está a lucrar, portanto não proteste”. Ora, esta maldosa intenção que ALC me atribui, como se eu estivesse a ditar regras e não a tentar analisar o funcionamento desta economia, deve-se à sua graciosa — ou falsa — ingenuidade. Não se pode pensar que há uma razão intrínseca e uma necessidade interna que justifiquem o fervilhar de acontecimentos culturais que requerem a presença dos escritores — festivais, apresentações, sessões, leituras, mesas-redondas, debates, conversas, intervenções, conferências, colóquios, discussões, talk shows. Esta cultura das manifestações que não se sabe bem o que manifestam tem os mais variados pretextos (o mais comum é o da “promoção dos livros e da leitura”) e surgiu para servir os mecanismos e estratégias comerciais das editoras (nada que não seja legal e legítimo), que se alimentam de uma nova lógica da condição do trabalho do escritor, da sua difusão e legitimação. Não existiriam todas estas manifestações culturais se elas não fossem exigidas pela nova figura do escritor e do intelectual, o “intelectual de si mesmo”. E, portanto, participar nelas é sujeitar-se às condições desse trabalho intelectual, tal como o neoliberalismo as configurou. Há boas razões para criticar essa condição e não querer participar nela (alguns fazem-no, de maneira radical ou moderadamente), mas quem participa está, ipso facto, a entrar no jogo e a aceitar e a legitimar as suas regras. Tem o direito de participar, mas não pode ao mesmo tempo querer situar-se de fora e ignorar as verdadeiras razões pelas quais passou a ser admissível e corrente não pagar aos escritores que alimentam esses acontecimentos culturais. Certamente que nem todos se inscrevem na mesma lógica, mas a economia política da promessa passou a ser uma espécie de superestrutura ideológica.
ALC acha que analisar as coisas desta maneira é um exercício pérfido de um espírito maligno, impermeável às boas e grandes causas para as quais está mobilizada sete dias por semana, ao contrário de mim, que sirvo uma péssima causa, sempre a mesma, uma vez por semana, todas as sextas-feiras. A boa causa a que os escritores emprestam muito do seu tempo é a de uma cultura obesa e que fabrica a conformidade e o consenso, dissolvendo todas as asperezas da arte, toda a resistência da literatura. A boa causa pela qual ALC acha escandaloso que os escritores não sejam remunerados não passa, a maior parte das vezes, da submissão da literatura e da crítica à inocuidade cultural, aos ditames das anestesias de largo espectro sob a forma da celebração e da apologia.
Mas a hostilidade de ALC em relação à minha análise tem ainda uma outra razão: ela jamais poderá admitir que aquilo a que chama, em linguagem cheia de conotações teológicas, “criação literária” seja analisado como “trabalho intelectual”. Para um “criador” como ALC, confrontada em permanência com as grandes causas que se erguem da miséria do mundo e devem ficar plasmadas na grande causa literária, a atitude que consiste em analisar, usar conceitos, objectivar como quem olha de fora, tudo isso significa agir como detractor (daí, o identificar-me como cínico). Temos aqui o paradoxo da objectivação, que consiste em objectivar aqueles que se julgam os detentores do monopólio da objectivação pública. ALC chama cinismo à minha atitude analítica porque se sente analisada e porque a análise reduz à indigência o registo que faz dilatar demagogicamente o seu Eu pouco dado à sobriedade: o registo da exclamação e da interjeição, que nela se substitui à análise e à compreensão. ALC investe tanta força missionária para que a sua escrita literária se exerça perante o mundo e a sua época, que lhe passam completamente ao lado os mecanismos que a situam e caracterizam, não perante o mundo, mas no interior do próprio sistema literário. E se alguém comete a malvadez de analisar as coisas nesse plano, deve ouvir o veredicto: é um exercício de claustrofobia, é um bloqueio de todas as saídas. É, em suma, o “cinismo sistemático”. ALC ignora que nenhuma literatura consegue interrogar com inteligência e eficácia a matéria política e social se não souber interrogar em primeiro lugar as próprias condições de uma política da literatura. Tudo o resto é teologia da criação e desperdício de boas causas.

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