segunda-feira, outubro 26, 2015

Antes pelo contrário


Anda aí um bando por cima de genial de novos poetas brasileiros. Quem diz? Eles. Garantem mesmo. Dão-se, juntam-se, fazem-se subindo uns pelos outros de exaltação. A internet vive babada. Já uiva com eles. Porque os versos, os blogues cheios deles, não basta. Ficam ali, quietos, virtuais, gritando como coisas aflitas de vontade de causar confusão. Daí se zangam. Quem é o culpado? Como por cá, são os Estados Gerais. O Mundo que tem mais o que fazer que passar o tempo batendo palmas, celebrando a moçada. Nestes tempos que têm o seu livro de reclamações cheio das obras poéticas desta turma, tempos em que, de resto, não há quem risque uma frase na areia que não sofra a ausência de um público para esse momento mágico em que foi conseguido um momento heróico na língua que, mal ou pior, todos falamos, este tempo em que, como todos assentem, a mediocridade atingiu a sua apoteose, é o mesmo em que os poetas se auto-proclamam génios pela boca dos amigos. Uma puta camaradagem. Só que com tanto génio dando sopa para esse tempo, ele ficou mal agradecido, meio que se dissolveu, exausta sua alegria, preferiu um filme, depois foi dançar, caiu com uma qualquer, se calhar até pagou, que horror, com tanta poesia aí se dando de graça. A verdade é que não dá mais para sentir o pulso de toda essa grandeza. Então vem um Dirceu Villa, inconsolável, dar testemunho em nome do enormíssimo Ricardo Domeneck. Para começar, diz logo: "É preciso ler Ricardo Domeneck." E parou tudo. Um acidente do caralho na via principal da poesia. Tudo esculhambado. Vamos ver? Segue Dirceu: "São tempos estranhos os que vivemos, nos quais não damos atenção ao que dizem os nossos melhores poetas." A coisa está muito feia mesmo, tão feia que vamos lá atrás, ganhar balanço nos clássicos: "Talvez, finalmente banindo os poetas da república como entendeu-se tortamente o Platão da República [última hora: já seguiu circular para todas as instituições de ensino daqui ao cu de lá avisar que andou-se séculos a ler tortamente, na verdade mesmo a torturar o coitado do Platão, mas talvez inda haja tempo, Villa chegou agorinha da Ágora] , supomos cumprir o desígnio de uma harmonia medíocre de magro contentamento & muito horror." Faz parágrafo.
E continua no seguinte: "Mas é com isso que perdemos nossa civilidade em tempos tão estranhos." Tirem os chapéus,  faça-se um minuto de silêncio. Dirceu segue. Agora já não faz parágrafo, está até meio ansioso por soltar os gatinhos chegada a hora de passar do lamento fúnebre pelos nossos dias para a maravilha que é, deles, ter surgido não um nem dois, ou três, nem quatro, que já seria Obra!, até o quinto já foi, chegámos ao sexto livro de Domeneck. Toquem o hino, porra! Kaboom, Samba nas ruas de Berlim, a Merkel vem à frente, fica magra numa só noite. Truz, truz. Quem é? Outro poeta que traz "as estranhas trepidações deste tempo, as complexas alegrias." Doutor, que bom, entre, estávamos todos à sua espera. E mais. Mais? Sim, muito, muito mais. E para isso, nada como citar o Pessoa, que já subiu tanto na consideração do mundo que nem é poeta, é mesmo engenheiro das Obras da Máxima Serventia. Diz Dirceu que, em Domeneck, não se trata de "um mero mecanismo de espelhamento porque o poeta aqui pensa [o que é raro como se sabe], como na velha & exata fórmula de Fernando Pessoa: "aquele que em mim sente está pensando". Pronto, Pessoa: check. Vamos indo que se faz tarde. Dirceu segue ajuizando como "não por acaso [e sublinhe-se que é mesmo por inteligent design do sujeitíssimo poético], o livro tem um desenho admirável, abrindo no pólemos grego das estátuas & dos hoplitas [não me perguntem que eu também não tive paciência de ir ver no google, mas nestes casos o meu conselho é: ide à confiança, deve ser alguma coisa muito espantosa, aliás fica um cheirinho a cultura que até dá um nó cá dentro] para ir se concluir na lápide do túmulo de Yasujiro Ozu"... e aqui atenção. Uma vez mais, para que não fiquem dúvidas do inteligente design dessa coisa toda, Dirceu afiança que se trata de um percurso que só não é significativo se você estiver sob efeito de alguma maciça distracção." Eu até fui fazer café porque estava a começar a sentir avançar sobre mim a maciça distracção do meu tédio, esse cabrão mal-educado.
Começa a tornar-se repetitivo, mas Dirceu é sério, e gente séria repete que não estamos aqui com brincadeiras. É por isso que, no parágrafo seguinte, diz que "Platão não está ali no topo em posição neutra: "medir com as próprias mãos a febre" é um regime tão sistemático quanto irônico, uma vez que seria possível repetir Platão via Ovídio, e Marsilio Ficino depois [Oi?, quem tá falando?] est deus in nobis, agitante calescimus illo;/ impetus hic sacrae semina mentis habet"... Nem vos digo a alegria que é ouvir falar tão bem latim, é que soa a coisa porca embora agente saiba que há de ser alguma verdade santa... Dirceu ajuda: "há um deus em nós, ao se agitar nos aquecemos; seu ímpeto tem as sementes da mente sagrada". Eu não vos disse? Disse. É lindo. E já não falta muito para acabar. Diz Dirceu que "medimos, os poetas, nossa própria febre agora, & é uma febre de solitários, "a faca e o fogo/ na própria pele"." Aqui ele diz tudo mesmo, não é?. Os poetas sentem a faca e o fogo na própria pele. Não admira que tantos leitores se sintam a mais, segurando vela para o ritual esquisito do poeta, arfando lá no meio da sua possessão.
Depois vem ainda um parágrafo explicando que "sabiamente" nos seus poemas Domeneck "não quer ser Virgílio nem Pound". É pena, dirá algum leitor que já perdeu este tempo e estava a ver se havia alguma possibilidade de reembolso. Não há. Mas a razão é muito simples. Domeneck, diz Dirceu, passa ao lado de um futuro como Virgílio ou Pound porque está "sóbrio de riso em sua própria pele febril". E é isso, no fundo, uma febre.
Antes de se despedir, Dirceu ainda enfatiza: "Tempos estranhos, medida humana."
De facto, acrescentamos.
E nossa opinião sobre o sexto livro de Domeneck? É uma bomba, é uma merda? Não e não. Na verdade, não é mau nem é bom, antes pelo contrário.

Bibliografia: contracapa de "medir com as próprias mãos a febre", de Ricardo Domeneck, uma edição da Mariposa Azual (Outubro de 2015)

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