sexta-feira, setembro 04, 2015

A noite imóvel, fragmentos


§
O tempo pára, como se a música
dilacerasse as cordas da história,
e o anjo, o anjo necessário
e urgente,
batesse asas depois da noite imóvel.

§

É cedo, demasiado cedo, escuto as horas.
Bebe-se café e estranha-se o poder
de orvalho e cansaço
que há na manhã.

§

A cidade é um mapa destituído
de sonhos, núpcias, convénios de sangue
e tumulto.

§

Olhei o espelho, o negro filme
comoveu-me até ao osso,
uma antecipação dessa flor
que o temível compõe na lapela
do fotografado,
noivo e sempre ausente.

§

Onde estará a partitura do sonho, agora
que nada depende já do nosso desvelo
de humanos comovidos?

§

Um mapa está sobre a mesa.
Encontro aí também um livro.
O mapa está semi-apagado, a espaços
largos entre inscrições
encontramos terras sem nome,
incógnitas, sinais de manchas e descuidos.
O livro está queimado,
carbonizado. O livro
é uma sombra de cinza
que se desmancha ao toque.
A mesa era do meu pai, mas o mapa
e o livro são apenas fragmentos
ou indícios do que
obscuramente fui.

§

Subo as escadas, terceiro andar.
Assemelham-se a teclados
os lances de degraus.
Pianos pretos, de caudas mortais.
São mortais os pianos.
Consentem o luto e a espera,
o silêncio, o oco, a espera.

§

A sala tem uma cadeira
e a cadeira antecipa
a espera.
Alguém se sentará aí,
esperando
a imóvel noite.
O seu olhar será profundo
sob as máscaras
que roubará ao rosto,
película a película,
pele a pele.
Tanta coisa dependerá
dessa intransparente
notícia
da realidade
declinada e mortal,
dessa mudez
de linguagem e recolhimento.

§

Eras criança
e sentavas-te no chão
muito quieta,
abeirando-te da terna
chegada.
A flor mais negra
depositava a leve,
segura forma
sobre o teu olhar
por magoar.
A mãe encerava o soalho,
havia silêncio entrecortado
por disparos distantes
lá fora,
um desígnio de normalidade,
uma figuração do Paraíso
ali dentro,
ali dentro.
Depois vinha
lentamente –
de mansinho, dirás hoje, perplexo –
e abandonava a suave
digna mão
sobre a tua cabeça.

§

A recidiva flor de ninguém
haveria de sulcar
a frágil pele
da terra.

§

És da infância,
mas não regressarás ao que és.

Dezembro de 2014

- Luís Quintais

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