quinta-feira, janeiro 08, 2015


[a quente manhã de janeiro]


aproxima-te – não hesites – da janela
e escuta comovido, porém
sem pranto ou prece pusilânime,
como quem frui de um último prazer, os sons,
os soberbos acordes do místico tíasos:
e saúda Alexandria, enquanto a estás a perder”.

Konstantinos Kaváfis


a quente manhã de janeiro
se insinua em sol
sobre o pé de romã
em minha varanda
justamente quando começo
a tatear o emaranhado
de signos da internet:

uma manifestação marcada para depois de amanhã em São Paulo,
um atentado contra o Charlie Hebdo, em Paris,
uma declaração da nova ministra de Dilma,
fotos de férias e verão,
empresários paulistanos que investem em água gourmet
e o vídeo do policial francês sendo morto
que me desperta uma forma de ternura
nunca imaginada –

pois a simpatia que não nutro por policiais
esbarra estranhamente na desproporção do visto:

– é preciso ter ódio para ser policial,
mas já caído, prestes a tomar um tiro na cabeça,
o oficial volta sua mão a um dos homens encapuzados em um ato
                        [de clemência,
ou, pra parar a bala com a mão,
conforme o filme que lhe induzira talvez
ideias pueris de justiça,
mas em vão –

diz sua mão,
‘eu tinha ódio’
ou antes,
‘eu achava que
tinha ódio’ e

Dimashq, Trípoli, Cabul, Porto Príncipe, Ho Chi Minh City são
                           [outra história
enquanto Hollande diz, em seu pronunciamento, duas vezes
a palavra ‘bárbaro’
(antes da França ser França
os povos que ali habitavam
eram chamados de bárbaros).

hoje, a França se embarbára contra os barbados
e o le point espalha nos metrôs de Paris
a chamada nos ennemis islamistes
(em cima a palavra MALI contextualiza discretamente).
A França de Goya é civilizada
e a Europa un jour parlait français.




nesse ínterim,
um chefe de família em 2013
faz a transferência na Châtelet
e vê o anúncio do le point.
Todavia segue para o trabalho, vende
                     [sua força,
limpa os corredores do musée du Louvre,
volta ao metrô, vê o anúncio,
nos ennemis islamistes
(em cima escrito MALI, discretamente) –
segue à casa e dorme,
extasiado em cansaço.

pouco antes,
uma turista americana de 2009 sai do musée du Louvre.
Ela se promène pelas Tulherias até o Carrossel
e do Carrossel até a Champs Elysées
onde para na Louis Vuitton
para comprar um acessório:
‘Isto é Paris, Isto é a França’
diz a turista em seu entendimento;
plena do sentimento
de partilhar da parcela supostamente a mais real
que aquele lugar tem a oferecê-la.
Então pega um taxi
e volta ao hotel razoavelmente medíocre,
quase em Porte de Vincennes.


hoje
o policial morre
estendendo a mão para o
                   [assassino:
seu filho ganhará uma pensão
que permitirá uma vida tranquila:
acabar o liceu com algum
                   [dinheiro
indo ao mk2 uma vez por semana,
ser amigo de uma moça proibida
                   [de usar o véu
que poderia ter sido sua esposa,
mas que voltou à pacífica Argélia
e fez um bom casamento
para os padrões locais.

isto
justamente quando começo
a tatear o emaranhado
de signos da internet
e a quente manhã de janeiro
se insinua em sol
sobre o pé de romã
em minha varanda:

os meus ancestrais, descansando à sombra num escaldante verão
                    [da Anatólia
acreditavam que a romã era um fruto de bons augúrios e fecundidade.
Isto, meus ancestrais, foi antes e depois de todos à margem do mediterrâneo
terem sido, sucessivamente, bárbaros e civilizados,
antes dos armênios serem cruzados e depois de quererem que eles não
                     [existissem mais;

antes que todos um dia olhassem para as ondas do atlântico
foi-se bárbaro, herege, pagão, civilizado, infiel;
a todos fora reservado o gume da cimitarra mais rápida que a cruel
                    [taxonomia
mas sempre, uma tarde de romã à sombra num escaldante verão da Anatólia.


--- William Zeytounlian, 7 de janeiro de 2015



Sem comentários: