terça-feira, novembro 18, 2014


A poesia não é nenhuma panaceia. Não tem resposta para a cambada que vê os dias todos repetidos nesse cinema de projecção solar, fatiados pelo bater da pálpebra nocturna. Mas agora fez-se moda andar à cata de versos como de cogumelos e fazer deles uns cozidos ao serviço da ocasião como se um subsídio para o vazio d'alma. Não caem muito longe dos mantras e mezinhas verbais que cospem os guruzecos da auto-ajuda. A paulócoelhização dos fóruns é forçada por uma comunicação obcecada com a empatia mais básica, moldada a virose, espirrinho que segue por tweet ou posta de facebook, e todos os dias surgem estes ciber-conselheiros a cagar sentenças para uma consciência hipersensível mas absolutamente impotente. Fizeram moda de sentar esse bicho-livro no colo, escamá-lo, arrancar o verso ancorado nas suas profundezas e fazer dele bóia de sinalização para as naufragas vidinhas que vão levando sem coragem para a correcta dose de manguito necessária para pôr este trânsito de merda na ordem. Está muito triste andar no meio de tanta alegria frouxa, falsa, lampeira. Gentinha-a-like, dando-se corda nesta troca de cliques, sorrisos feitos de ponto e vírgula e parêntesis que ficam por fechar. É toda uma relojoaria do desastre, uma convivência que zera os impulsos, percutindo sensações em sinais cada vez menos expressivos, nivelando tudo tão por baixo. Para colmatar este vazio tapam-no com versos, citações, a língua que falavam aqueles que foram de um tempo em que havia tempo para pensar e depois exprimir perfeitamente uma ideia. ("Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.") Passar com os olhos pela parede, ler os pequenos cartazes e anúncios que vão cruzando estas vidas, e perceber um código frenético, nauseante de tão repetitivo, apostando numa corrida de cães, numa luta de galos, grilos, ou qualquer outra porra que estrebuche num conflito frente ao espelho. Na ala dos egos estropiados, além do caldinho servido p'los "amigos" (feitos todos enfermeiras uns dos outros), dos constantes reforços e palmadinhas nas costas, vem a poesia servir de sustento, colunas maciças erguendo uma palhota. Tudo contentíssimo, a parafrasear os últimos exemplares realmente vivos da espécie, sem se darem conta de que não passam de ecos, de pequenas rugas na superfície líquida do tempo provocadas por pedradas vindas de muito longe. Vemos esta gente sempre tresandando a uma efusividade inútil, cansando o sentido original para arrancar dele algum slogan e seguirem com as suas vias em curva constante. E não passam de campanhas de marketing para o produto que são, modos diferentes de se venderem iguais. A poesia não serve de sopa para este género de pobreza. O sentido precisa ser arrancado à vida, contra ela, não é algo que simplesmente se descobre. É preciso lembrar que "embora seja profundo, este buraco é informe. Não o encontram as palavras, chapinham à volta. Sempre admirei as pessoas que por acreditarem ser revolucionárias acreditavam ser fraternas. Falavam com emoção umas das outras: escorriam como sopa." Sopa somos nós. E tudo à volta é uma assustadora pobreza.

1 comentário:

maria maria disse...

(A Poesia)
Então... resta ao que fala o silêncio, e mesmo assim não sabemos se é essência ou sinceridade, e ao compositor consciente escrever uma ópera da ruína - mas não do que não é matéria de escombros. Por outro lado, a todos nós já, cadáveres ou alma, os carris da História nos esmigalhou e em síntese final, ou a que permanece, o absoluto é impermeável ao que não é eterno

(As pessoas)
(ao que não é eterno mas que foi usado, (o que não é eterno, sustentará ele o quê? é raiz do quê? nem no escombro desarvorando…), o que é atemorizante pois ninguém é palha e fomos todos necessários, então alegria ou dor - o que se cantará? – se alguns glorificados estão, a todos não deploraremos?)

Da Poesia
Interessa a irmanação no sopro, participação anónima no absoluto, forma silenciosa e inaudível de eternidade (não é necessário conjugar o verbo ser), forma de (aqui é assim necessário) não ser farrapo do tempo, farrapo no tempo.

Maria João