sexta-feira, outubro 24, 2014

De morte


I

É de morte. Essa é de morte.
E mijavam-se a rir pelas pernas abaixo.
Anedota portuguesa e depois outro
excesso, mágoas profundas, luto
e gritaria. Um culto, mal pressente
a morte iminente, abre os seus grossos
braços de homenagem e exibe
a voracidade peganhenta do unto
e da vergonha. Estátua verde
ou cinza, o poeta à beira da morte.
Enchem-se as montras das livrarias,
atoardas de ocasião, umas mais
domésticas do que outras, gastam
papel estupidamente, sempre eram
mais umas árvores que se salvavam.
Pior do que isso só aqueles poetas
que escrevem com a morte à porta
para exibição de uma lucidez especial
que julgam ter adquirido. Para isso
é que não há paciência. A sério.
Mas talvez fosse de esperar, porque
ainda mal tínhamos nascido e já
morrer e matar vinha na canção
do gato. O gato não morreu, mas podia
muito bem ter morrido. Assim, como
se tivesse voz, deu só um berro e foi-se
embora. Sim, a palavra morte ocupa
a mente dos homens, nasceu
com os homens e nunca há-de morrer.
E a arte, do sol à treva, tudo mostra,
os homens insistem na arte
perpétua de fazer e na desgraça.

- Helder Moura Pereira
in Relâmpago, nº34 - Poesia e morte

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