segunda-feira, agosto 11, 2014

Coisas desencadeadas


1) Mutações bruscas, cortes radicais com o passado literário, parecem-me inviáveis. Começar outra vez a poesia portuguesa como se ela acabasse de nascer? Desculpem-me (os espíritos «cultos») a imagem camponesa, mas a enxertia faz-se na árvore que já existe. Para a revitalizar ou para conseguir frutos diferentes que trazem no entanto um pouco do sabor, da textura anteriores.
Certamente, vivemos um tempo de prodígios. A física nuclear, por exemplo, encontra-se à beira dos mais íntimos segredos da matéria e são imagináveis hoje espantosas mutações. Mas qualquer identificação entre o conhecimento científico e o experimentalismo literário (o letrismo, a poesia concreta, a atomização dos versos, das palavras, a produção poética através de máquinas, etc.) não deve ser tomada a sério, se é que alguma coisa a propõe claramente.
2) A crise primordial do mundo moderno pode talvez sintetizar-se assim: almas contra-revolucionárias com as armas das revoluções industriais nas mãos. A arte, espelho social, apesar de tudo límpido, reflecte por força as consequências dessa crise. Tomemos para exemplo um aspecto do problema: o «malefício» dos objectos. Sabemos todos que o domínio crescente da natureza pelos homens constitui a lei fatal, irreversível, do progresso. No entanto ninguém me acusará de reaccionário, espero, se disser que implica graves perigos para o próprio homem e poderá transformar-se até num boomerang. Não me refiro já à brutal aventura da destruição que o 20.º aniversário da bomba de Hiroshima, comemorado há pouco, recorda aterradoramente, ou à poluição industrial ameaçando de gangrena a terra, a água, o ar, a flora, a fauna. Refiro-me aos perigos dum outro apocalipse, por dentro, menos espectacular mas também destruidor: a tecnocracia; a habituação passiva ao mecanismo, a uma atmosfera de metal diluído; e a idolatria, a sufocante obsessão dos objectos, fomentada por um aparelho publicitário formidável. É neste ponto que julgo ter a arte um papel de medicina humanista, de contraveneno insubstituível. Sartre diz algures que «o rigor científico reclama em cada um de nós outro rigor mais difícil, que o equilibra: o rigor poético», sublinhando que se trata de duas formas culturais «complementares».
A antinomia homem-objecto está plantada a meio da problemática artística das sociedades neocapitalistas e não é por acaso que lá está. Daí, que a substituição do poeta pela máquina electrónica de fazer poemas se me afigure uma coisa sem destino, uma «arte de consumo» sem consumidores. O poema é um objecto de substância especialíssima, com meios de produção adequados, cuja evolução se processa por caminhos muito seus que não admitem, ao que penso, qualquer ruptura na profunda integridade em que fluem. A poesia evolui, experimenta, liberta-se, mas não deixa de ser um produto directo, dilecto, da consciência humana. A verdadeira vanguarda não imita exactamente aquilo que mais precisa de combater, o esquecimento do homem na rápida aridez do mundo, que não advém do progresso mas do seu uso deturpado. Se a poesia é como queria Maiakovski uma «encomenda social», o que a sociedade pede aos poetas de hoje, mesmo que o peça nebulosamente, não anda longe disto: evitar que a tempestade das coisas desencadeadas nos corrompa ou destrua.

- Carlos de Oliveira
em resposta a um inquérito do Diário de Lisboa, em 1965

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