domingo, agosto 10, 2014

Ainda há críticos no país: Joana Emídio Marques



Quando os poetas interrogam Deus?
[texto publicado na edição de sábado do Diário de Notícias] 



Numa cultura sem grandes tradições místicas, Deus na poesia é tema vasto e instigante. Porém, ‘Verbo: Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa’ fica a saber a pouco 


Pode-se escrever poesia sem de alguma forma lidar com o Divino? Poderá algum poeta moldar as palavras, o seu peso e a sua leveza sem um desejo de infinito que nos conduz necessariamente... a Deus? Há, afinal, dentro do nosso tempo descrente um tempo crente, em que não se teme explorar as regiões noturnas nem a nudez luminosa, mesmo que seja como parte de uma crise, de um dilaceramento?

Verbo - Deus como interrogação na Poesia Portuguesa é uma antologia feita por José Tolentino de Mendonça e Pedro Mexia, na qual se reúnem 13 poetas portugueses do século XX em cuja obra (ou parte dela) surge uma interpelação direta a um Deus cristão, um Deus vivo e contendo um ponto de plausibilidade que detém a força irreprimível das questões.

Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão, Adília Lopes, Daniel Faria, são os poetas incluídos nesta obra que nos deixa com muitas interrogações (o que à partida será bom) mas também com uma certa frustração:

1) Por conter uma lista tão exígua de poetas;

2) Por ser essencialmente cristã;

3) Por não incluir poetas jovens que estão a produzir na última década;

4) Por não ter como suporte uma introdução sólida que dê aos leitores a possibilidade de um salto para mudarem, aprofundarem o seu nível de leitura, abrirem novas portas de entrada para a obras destes poetas, e para a relação entre a poesia e o divino em particular;

5) Porque é que esta antologia (mesmo que o seu critério último seja o do “gosto” dos antologistas) não abrange a dissidência da visão convencional de Deus?

Verbo não tem uma introdução. Tem uma “explicação”, “termo retirado da obra de Daniel Faria”, explica Pedro Mexia. Esta não inclusão de uma introdução mais vasta foi “propositada” pois o objetivo do livro é tão--só “uma tentativa que nunca ultrapassasse a difícil fronteira entre os poemas e as biografias dos autores”, porque não queriam “tentar converter postumamente poetas que não eram crentes nem forçar os poemas a uma intenção que eles não têm”.

“Escolhemos como balizas temporais as obras de Nemésio e Daniel Faria e lemos com atenção e vagar os poetas portugueses nascidos entre 1901 e 1971, que fizeram da ‘questão de Deus’ um tema, motivo ou obsessão”, escreve Tolentino de Mendonça. “Muitíssimos autores e movimentos ignoraram a questão de Deus inexistente ou ocasional no primeiro modernismo, no neorrealismo, no surrealismo, na poesia 61, na poesia experimental, em boa parte dos poetas nascidos na segunda metade do século. Em contrapartida, a questão aparece com frequência nos autores ligados à Presença, ao Cadernos de Poesia ou até à Árvore, pareceu--nos, porém, que interessava mais a questão dos poetas consigo mesmos, quer se tratasse de fé, angústia, recusa, apostasia, incompreensão, revolta ou prece.”

Mexia explicou ao Q. que “a questão de Deus foi muito importante para os poetas da primeira metade do século XX, mas foi perdendo importância na segunda metade e hoje tende a ser uma coisa ocasional ou lateral. Nós quisemos fixar-nos nos poetas que colocaram Deus como questão fundamental numa determinada fase da sua criação poética, mesmo que depois isso quase desapareça como no caso de Ruy Belo”.

O misticismo na poesia portuguesa

Não há uma tradição mística em Portugal como, por exemplo, na Espanha. Há um quietismo algo contemplativo e ternurento, de um Deus menininho e uma mãe virgem. Camões, como em tudo, é uma exceção. Mesmo o Pessoa (embora capaz de esoterismo filosófico) fala daquele menino Jesus rapazito no Guardador de Rebanhos. O Guerra Junqueiro teve uma relação violentamente anticlericalista com o divino, mas o seu suposto catolicismo era judaico. Houve também o Raul Leal (surrealista), é claro, em demanda de Deus pela via inversa, da degradação. Os títulos são sugestivos: Sodoma Divinizada, Anthéchrist et la Gloire du Saint-Esprit... E o poema: “As gloriosas convulsões de Luxúria/ e Fogo/ que agitam Jeová” (...) “Glória a Deus/ que sublimemente se submerge/ no abismo-espírito/ do Reino de Satã.” Era um gnóstico e (consequentemente) um dualista. Degradação da carne para permitir a fusão (gnose) do espírito eterno aprisionado na carne com o eterno divino. De algum modo (sem estridência) o José Blanc de Portugal também era gnóstico. Mas era um intelectual e não um místico.

“Uma palavra só/ mas essa não sei/ seria Deus se a soubesse agora/ meu Deus/ Só sei que existe,/ a única que é e foi bastante/ p’ra criar estas com que escrevo e falo/ do que não sei ou sei apenas que É.”

Mas como explicar a ausência de Miguel Torga, José Régio, Manuel António Pina, esse ateu? Ou dos poetas jovens que estão a escrever atualmente temos pelo menos dois exemplos claros: Daniel Jonas e Inês Fonseca Santos, que fazem dos textos bíblicos matéria da sua obra poética onde se interpela Deus não de forma direta mas alterando-o pela forma radicalmente nova como olham para ele e como lhe falam, como se aproximam?

Claro que os treze poetas incluídos tem obras que impressionam, pelo choque poderoso, a mistura de sentimentos e pulsões contrárias. Sena ou Ruy Belo são o exemplo de dois poetas em crise na sua relação com Deus. Já Sophia tem uma imaginário em que o panteísmo grego se mistura com o Deus cristão. Ou Nemésio, em que o Homem é simultaneamente “menos que nada e mais que tudo”. Para eles, Deus não retirou ao homem o lugar de uma grande potência, capaz de infinitos universos, recursos desconhecidos tantas vezes destinados não a conseguir a salvação mas a vencer a Criação. O fundo fala neles mais alto do que Deus.

“Amei-te/ quando gritei ao teu céu:/ devolve-me as minhas mágoas./ Eu de Deus não quero nada/ que não seja igual a ti;/ que não seja igual a mim./ Amei-te,/ porque eras maior do que eu;/ porque eras o meu destino:/ remendo, trapo, farrapo,/ natureza, minhas mágoas,/ homem farrapo divino. (“Corpo de Cristo”, Ruy Cinatti, página 48)

Eles não são escolhidos por Deus. São eles que escolhem Deus.

“(...) mas sempre somos nós e sermo-nos/ é o haver mistérios na alma e no mundo/ e o não haver necessidade de mistérios em ti./ Contudo sei que um dia cairei rendido/ e hei-de acreditar nos dogmas/ e nessa crença encontrarei a alegria de quem contempla paredes verdadeiras (...) (“Declaração”, Jorge de Sena, página 57).

Muitas vezes o Deus não nomeado parece dar a ver nessa ocultação uma relação mais intensa e profunda com Ele, como no caso de Adília Lopes ou de Armando Silva Carvalho, em que Deus não é uma coisa intemporal mas um produtor de histórias:

“Deus é a nossa/ mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos fora/ como a vida/ porque achamos/ que não presta/ Deus é a nossa mulher-a-dias/ que nos dá prendas/ que deitamos fora/ como a fé/ porque achamos/ que é pirosa” (página 195).

Mexia deixa claro que a intenção dos antologistas “não era abordar a relação da poesia com o sagrado” pois isso seria “um trabalho tão vasto que não caberia neste projeto”, já Tolentino de Mendonça afirma: “Esta não é uma antologia para crentes ou para não crentes, é uma antologia de poesia que dá exemplos de uma tema, de um motivo, de uma obsessão...) poetas com uma questão, com uma pergunta que nunca está respondida.”

Para que serve uma antologia?

O resultado de uma proposta antológica deveria ser suscitar novas questões, calar velhas respostas e alimentar nobremente a necessidade de falar dos homens. Facilitar a visão dessas regiões interiores e exteriores sempre mal descobertas mas não as circunscrever aos seus limites. Uma antologia é sempre uma afirmação de poder dos antologistas, dos que impõem o seu gosto, o seu discurso, a sua opinião sobre o tema no espaço público. Posição perversa. Se por um lado eles vêm mostrar uma face da obra destes poetas, por outro lado eles encerram-na num todo, é como se nos viessem dizer: esta é a poesia que interpela Deus, que dialoga com Deus. É esta e não outra, é esta que está recenseada por nós, medida e confirmada através da palavra permanente. Deus.

Ora uma antologia fala tanto daquilo que inclui como daquilo que exclui. E exclui todos os outros poetas que ao longo do século XX e início do século XXI abordaram Deus, nomeadamente o Deus católico.

Fora estão todos os outros. Sobretudo os dissidentes. De alguma forma, todos os poetas antologiados nesta obra são figuras mais ou menos consensuais por mais ou menos conhecidas, vivas ou mortas.

Como escreveu Maurice Blanchot: “O livro não é nada se não for paixão. Se não conduzir a um salto torna-se simples necessidade de representação.”(1)

É esse salto que esperávamos de uma antologia com um tema tão instigador, mesmo sabendo que tudo o que podemos fazer é aproximarmo-nos do tema, do seu irracional, do seu inominável, como o faz, por exemplo, Inês Fonseca Santos (n. 1978), que fala de úteros. Porque afinal pode-se meter Deus e um útero num poema.

“Senhor, liberta-me de mim mesmo/ para que eu possa esconder-me dentro/ delas. Dentro dela há pouco espaço,/ ela só me tem amor. Compra-me cigarros, cozinha-me refeições, expõe-me/ como refugiado aos efeitos benéficos do álcool - e aguarda./ Aguarda que lhe devolva amor./ Por isso, Senhor, peço: liberta-me/de mim mesmo para que eu possa esconder-me/ dentro delas, das paredes./ Dois metros e vinte por outros tantos ou mais é espaço suficiente/ para que possa esconder-me e servir-Te como mereces:/ erguer-Te uma capela, pintar-Te um fresco, ser genial para Ti, Senhor,/ liberto de mim mesmo/ por dentro das paredes/ do útero dela. (A Habitação de Jonas).

(1) Maurice Blanchot, Livro do Por Vir, Relógio D’Água.

Sem comentários: