quarta-feira, julho 02, 2014

Nuno Guimarães

fragmento terceiro


I

Campos de ira, tão vasto sentimento

vos afasta. íris morta! Os actos radicais

constroem, em projecto, um frágil

universo – a tinta, o espaço óptico.

Descansam os sentidos sobre pródigas

defesas: os filtros turvos, as precauções

na sua cura. Os nervos tersos

da análise da vida e da matéria.



II

Desviam-se dos livros. Hoje escreve

contra a morte dos olhos, a existência

passível de leitura. Ineptos, os sons

perdem-se na encosta. o vento fere

ainda? Inscrito

na área da cabeça, é esse rastro

ainda vivo. Domino a sua queda, os seus poderes

punitivos, a sua força hereditária.



III

Persistir no imóvel. Preencher

os anos que nos moldam

no vigor da fibra, no duro movimento

interior — a que destino, a que imaturo

ritmo, sem preço? Pois é o caro

prémio deste dorso

de  o cumprir, pensar, até ao fim.

Ou de saber adestrá-lo até que,

exausto, só impulso

vigore — a morte lida

num próximo sentido, ainda vivo.



IV

Como contacto único, a distância

entre as fontes. Solidários, os campos

de visão? Fonte comum, brilho, sintomas

de amizade? Tudo o que, fora,

comovemos. O ar, as linhas variáveis

do horizonte, comuns,

reflectidas. Assim crescemos,

paisagens de uma lógica imprecisa.



V

Uma lógica preside a esta noite.

Expulsa as sílabas, destrói a ilusão

dos livros, é táctil e real. Assisto à

sua composição, perdida a luz

e os reflexos: o breve ritual

da desfocagem, o movimento científico

do sol; os crânios submissos

entrando na penumbra e no exílio.



VI

Nos dias revelados, na posse do que dita

o  pó e as vigílias, nessa lenta

profusão de imagens e de rostos

traídos, roídos de beleza

—um dorso descomposto, deitado

sob a treva. E a cabeça

inclinada

cada vez mais no seu lençol.



VII

Ordem exterior, sentidos renitentes

à aniquilação, ao extermínio. O problema

de uma moral primeira, de sinais.

É o lugar de um movimento, de imutável

fidelidade nos limites.

Suporta-se o silêncio. A crosta

do imóvel. Mas quem exerce

este poder primário e punitivo?



VIII

Descemos para o mar. A economia

dos gestos, da matéria perecível

é árdua e inútil. Os deuses cegos

perderam o seu brilho, sobre as águas.

Rodeiam

a pupila, cansada pelo sol, enfraquecida

pela acção dos nervos e das vagas. Reproduzem

imagens lógicas, construções sólidas

e rígidas. Todo o rigor possível

destas praias.



IX

Mas nada aqui, embora estável,

nos redime do fim e do excesso,

viáveis à demência.

Exíguo, o pensamento constrói

paisagens sóbrias: um rosto

magro, insociável, corrompido

por hábitos marítimos. A sombra

intensa e dura. A exímia

e nítida cegueira.



X

Quem poderá deter a extrema

organização: os nervos dispersivos, os gestos

do saber, os tensos soros

despendidos — a perfeição perdida?

Domina-se o crânio, a pobreza do

espaço, na mais áspera mestria. Junto

aos pulmões descobrem: as formações etílicas,

o pó, a ressonância. Ainda quentes,

os órgãos de um ser vivo.

Sem comentários: