sábado, junho 28, 2014



A GRANDE PAZ LITERÁRIA


Se por acaso ou necessidade consultarmos as páginas, com mais de três ou quatro anos, de crítica literária e divulgação de livros dos jornais e revistas que ainda as mantêm, verificamos que esse material atrai um olhar sociológico, mais do que qualquer outro. Vistas nesta perspectiva, as entrevistas aos escritores são um campo fecundo de tropismos e tendências. De um modo geral, elas tornaram-se um discurso de complacência e satisfazem as solicitações fúteis do género people: o escritor fala de si próprio e do seu trabalho literário em registo de autopromoção e aceitando que tudo seja focalizado na periferia, que o texto seja um pretexto. Geralmente, o escritor aceita sem reservas nem desvios falar do modo de produção e escrita dos seus livros, dos seus gostos, das circunstâncias em que decorre o seu trabalho. A questão mais  recorrente  é a de como “surgiu” o livro, como é que tudo começou, como se deu o processo de “criação”. E, necessariamente, a partir daí tende-se para uma concepção quase teológica da “criação”: o escritor entrevistado é elevado naquele momento à condição laicizada do “criador”. Este tipo de entrevistas, com os seus recursos e modos próprios do chatting, é tão comum que mal damos pelas diferenças entre o escritor entrevistado X e o escritor entrevistado Y, do dia ou da semana anterior. Seria, no entanto, errado passar um atestado de mediocridade apenas baseado nestas entrevistas. Elas tornaram-se um género retórico, com os seus códigos: implicam um conjunto de obrigações e estereótipos às quais tanto o entrevistado como o entrevistador respondem quase automaticamente. As entrevistas aos escritores mais novos – que são as maiores “vítimas” destas entrevistas, já que elas têm quase sempre um objectivo de apresentação – revelam ainda uma outra característica que pode ser também confirmada noutras circunstâncias: escrever, ser escritor, não requer ter lido muito e ter uma relação forte com a história e a tradição literárias. Esta ausência de um vínculo memorial com a literatura é um fenómeno completamente novo. Pensemos numa Agustina Bessa-Luís: traçar-lhe uma linhagem imediata é relativamente fácil, até porque ela a tornou de certo modo explícita. Escrever foi sempre, para ela, também uma forma de ler e de ocupar uma posição na cadeia transmissível da tradição E, por isso, lê-la é entrar nos abismos sombrios de um tempo formado por balizas literárias. Ora, há hoje um fenómeno novo que é a dos escritores que não parecem estabelecer um vínculo com o que veio antes deles, que parecem escrever sem ter verdadeiramente lido. Por isso, mas também por outros motivos (faltam os espaços para a publicar e desapareceram as solicitações), é cada vez mais rara a crítica de escritores, isto é, os textos de escritores sobre os livros de outros escritores. Pensemos nas tais entrevistas: se concluíssemos, a partir delas, acerca das leituras destes novos escritores, diríamos que eles não reclamam uma memória e um diálogo com a tradição, nem se lêem uns aos outros, Por isso, o campo literário já não é um “campo de batalha” como foi de maneira extrema durante toda a época do modernismo, com as suas guerras e rivalidades sempre em curso, cujos efeitos chegaram ainda até nós, muito embora já de maneira enfraquecida. As batalhas propriamente literárias transferiram-se para a edição e para as regras de integração no espaço público (veja-se o “caso” Herberto Helder). Os escritores já não são combatentes nesse campo de batalha. A relação uns com os outros é, agora, de outro tipo: é uma relação de concorrência.

- António Guerreiro
in Ípsilon (27.06.2014)

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