O POPULISMO CULTURAL
Ao mesmo tempo que lançavam gritos de
alarme e instauravam um estado de emergência pelo reforço, em toda a Europa,
daquilo a que chamam “populismo” (uma palavra que seduz tanto que o seu uso
entrou em regime de inflação e corrompeu-se como conceito), analistas, jornalistas, comentadores políticos e
editorialistas entregavam-se a uma operação que, utilizando a classificação que
eles próprios puseram em voga, é eminentemente “populista”: transformaram a cena política numa arena e
entregaram-se ao relato das tácticas e estratégias de dois competidores
desportivos de alto nível que visam a vitória final: António Costa e António
José Seguro. Por esta via, tornaram-se, ambos, personagens de cartoon. A reacção ao resultado das
eleições tinha acabado de mostrar que estas oram fabricam legitimidade, ora
fabricam vencedores, consoante as necessidades, as argúcias e o jogo das
aparências. Por efeito de um relato jornalístico conformado às regras actuais
do storytelling, toda a disputa
política a que estamos assistindo no interior do PS decorre em termos de
competição desportiva ou de novela. Até ao limite do nauseabundo. O sucesso de
Marcelo Rebelo de Sousa deve-se precisamente ao facto de ele entrar sem pudor nesta
linguagem, “naturalizando-a” para consumo das massas. Ele é o mais alto
representante do populismo cultural (algo que devia ser radicalmente
incompatível com a função de professor universitário), um conjunto de
procedimentos e convenções vindos precisamente daqueles que acenam com o perigo
do populismo político e que se encontra sediado nos media. Este aparente paradoxo de um populismo cultural que se
instalou sem resistência por intermédio daqueles que não parecem alimentar
simpatias pelo populismo político diz-nos que toda a questão do populismo (ou
do conjunto de fenómenos que a palavra hoje designa, no discurso corrente)
precisa de ser vista de outra maneira. Precisa, em primeiro lugar, que se
observe e analise esta regra geral: sempre que há uma intenção populista, é o
povo que falta. Por isso é que se revela tão necessária uma distinção, em que
Hannah Arendt insistiu, entre cultura popular e cultura de massas. Outro
paradoxo deste populismo cultural (observável hoje até nos modos de circulação
e legitimação de muita da cultura erudita) reside no facto de ele, nos momentos
em que se entrega a arremedos de reflexão, gostar tanto de denunciar a
“decadência” e a “crise moral”, ou dos “valores”. Sempre que alguém fala desta
maneira, sempre que alguém apela aos “valores”, podemos ter quase a certeza de
que está a reivindicar um novo conformismo, uma ideologia Kitsch reactiva e restauradora, inimiga de todo o pensamento. A
reivindicação dos “valores” segue a par de uma ideologia ética que se tornou
sinónimo de moralidade e se satisfaz com todos os retornos. O quadro mental em
que se dá este populismo cultural é o mesmo que se revela incapaz de pensar a
abstenção, a não ser como afastamento voluntário do jogo da política e recusa
de participar nos protocolos do exercício dos direitos e deveres da cidadania
democrática. A ideia de que o cidadão queira afirmar o seu poder de não votar (que
não é a mesma coisa que votar branco ou nulo), simétrico ao poder de votar, e
queira que o seu silêncio não seja um silêncio que não fala, mas um silêncio
que interdiz que se fale em seu nome, é algo que a teologia popular do
comentário político não entende. Este é um dos muitos casos em que a
argumentação crítica da democracia representativa se tornou inimiga da própria
democracia, à imagem do populismo que é sempre sem povo.
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