sábado, maio 31, 2014


O INTELECTUAL, O PARTIDO E A TORRE DE PISA

Para uma iconologia política, a imagem mais densa de significado fornecida pelas televisões na noite de domingo passado foi aquela em que se viu Eduardo Lourenço, ladeado por Francisco Assis, recém-eleito deputado europeu, e um alto dirigente do PS (Alberto Martins), ser conduzido a um lugar, na primeira fila, da plateia que escutava e aplaudia as palavras que António José Seguro dirigia ao país, cumprindo o ritual seguido por todos os partidos. A coreografia tinha sido bem planeada: o intelectual português que mais escreveu – com empenho, lucidez e elevação - sobre o sonho e a realidade da Europa, enquanto tarefa política e continente espiritual, traria aos seus anfitriões um suplemento de “política do espírito” que eles poderiam assim reclamar e capitalizar, perante as câmaras das televisões, como o “nosso bem soberano”, como disse Valéry. Mas enquanto António José Seguro reivindicava uma “vitória estrondosa” do PS, Eduardo Lourenço, nas imagens transmitidas, mantinha-se cabisbaixo, parco nos aplausos e nada inclinado a contribuir para a verosimilhança da festa. A coreografia da aclamação intelectual ao mais alto nível ganhou a feição de uma parábola, em registo de farsa, do rapto da Europa, sob a forma de representação de um Eduardo Lourenço confiscado por um aparelho partidário. Não interessa se esta interpretação da coreografia não é confirmada pela verdade dos factos. Para todos nós, espectadores, a única verdade é a autorizada pela peça coreográfica, que não correspondeu de modo nenhum aos cálculos dos aprendizes de iconologia política, esses semióticos amadores e alucinados que julgam poder controlar o significado dos signos imagéticos que reproduzem. Em vez do intelectual como conselheiro do príncipe, o que as câmaras captaram reiteradamente foi a sua impaciência e melancolia, a incapacidade de representar o papel que lhe tinha sido atribuído, com o seu maior ou menor consentimento (não podemos saber nem isso interessa para os nossos argumentos). Para completarmos a coreografia, podemos imaginar que ele levava no bolso um pequeno livrinho, um texto de 1940, escrito por uma aristocrata do pensamento, Simone Weil, chamado Nota para a Supressão dos Partidos Políticos. Não ousaremos atribuir a Eduardo Lourenço a ideia de que que uma tal supressão seja desejável, muito embora devamos pensar que cabe a um intelectual a tarefa de pensar o partido, quando a sua forma se revela completamente caduca e já não podemos concebê-lo como forma organizada do conflito social. E quando o partido é já só o voto e o principal agente da neutralização da política. A incomodidade de Eduardo Lourenço perante o discurso do coreógrafo-mor poderia muito bem ecoar as palavras de Weil: “Um partido político é uma organização construída de maneira a exercer uma pressão colectiva sobre o pensamento de cada um dos seus membros”; ou então: “O único fim de todo o partido político é o seu próprio crescimento, sem nenhum limite. Todo o partido é totalitário em germe e em aspiração”. Pela nossa parte, só nos vem à mente, nestas noites de eleições, uma história contada por Gérard Genette, de um dirigente comunista, com uma grande verve retórica, que se dirigiu assim, em 1952, a um vasto auditório: “Camaradas, Bidault [ministro francês dos Negócios Estrangeiros] foi a Pisa. E sabem, camaradas, o que ele, Bidault, viu em Pisa? Ele viu a torre, camaradas. E sabem como é que ele a viu, a torre, camaradas? Ele, Bidault, viu-a direita. E o que é que isso prova, camaradas? Isso prova, camaradas, que é ele, Bidault, que está torto”.

- António Guerreiro
in Ípsilon (30.05.2014)

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