O INTELECTUAL, O PARTIDO E A TORRE DE PISA
Para uma iconologia política, a imagem mais
densa de significado fornecida pelas televisões na noite de domingo passado foi
aquela em que se viu Eduardo Lourenço, ladeado por Francisco Assis,
recém-eleito deputado europeu, e um alto dirigente do PS (Alberto Martins), ser
conduzido a um lugar, na primeira fila, da plateia que escutava e aplaudia as
palavras que António José Seguro dirigia ao país, cumprindo o ritual seguido
por todos os partidos. A coreografia tinha sido bem planeada: o intelectual
português que mais escreveu – com empenho, lucidez e elevação - sobre o sonho e
a realidade da Europa, enquanto tarefa política e continente espiritual, traria
aos seus anfitriões um suplemento de “política do espírito” que eles poderiam
assim reclamar e capitalizar, perante as câmaras das televisões, como o “nosso
bem soberano”, como disse Valéry. Mas enquanto António José Seguro reivindicava
uma “vitória estrondosa” do PS, Eduardo Lourenço, nas imagens transmitidas,
mantinha-se cabisbaixo, parco nos aplausos e nada inclinado a contribuir para a
verosimilhança da festa. A coreografia da aclamação intelectual ao mais alto
nível ganhou a feição de uma parábola, em registo de farsa, do rapto da Europa,
sob a forma de representação de um Eduardo Lourenço confiscado por um aparelho
partidário. Não interessa se esta interpretação da coreografia não é confirmada
pela verdade dos factos. Para todos nós, espectadores, a única verdade é a
autorizada pela peça coreográfica, que não correspondeu de modo nenhum aos
cálculos dos aprendizes de iconologia política, esses semióticos amadores e
alucinados que julgam poder controlar o significado dos signos imagéticos que
reproduzem. Em vez do intelectual como conselheiro do príncipe, o que as
câmaras captaram reiteradamente foi a sua impaciência e melancolia, a
incapacidade de representar o papel que lhe tinha sido atribuído, com o seu
maior ou menor consentimento (não podemos saber nem isso interessa para os
nossos argumentos). Para completarmos a coreografia, podemos imaginar que ele
levava no bolso um pequeno livrinho, um texto de 1940, escrito por uma aristocrata
do pensamento, Simone Weil, chamado Nota
para a Supressão dos Partidos Políticos. Não ousaremos atribuir a Eduardo
Lourenço a ideia de que que uma tal supressão seja desejável, muito embora
devamos pensar que cabe a um intelectual a tarefa de pensar o partido, quando a
sua forma se revela completamente caduca e já não podemos concebê-lo como forma
organizada do conflito social. E quando o partido é já só o voto e o principal
agente da neutralização da política. A incomodidade de Eduardo Lourenço perante
o discurso do coreógrafo-mor poderia muito bem ecoar as palavras de Weil: “Um
partido político é uma organização construída de maneira a exercer uma pressão
colectiva sobre o pensamento de cada um dos seus membros”; ou então: “O único
fim de todo o partido político é o seu próprio crescimento, sem nenhum limite.
Todo o partido é totalitário em germe e em aspiração”. Pela nossa parte, só nos
vem à mente, nestas noites de eleições, uma história contada por Gérard
Genette, de um dirigente comunista, com uma grande verve retórica, que se
dirigiu assim, em 1952, a um vasto auditório: “Camaradas, Bidault [ministro
francês dos Negócios Estrangeiros] foi a Pisa. E sabem, camaradas, o que ele,
Bidault, viu em Pisa? Ele viu a torre, camaradas. E sabem como é que ele a viu,
a torre, camaradas? Ele, Bidault, viu-a direita. E o que é que isso prova,
camaradas? Isso prova, camaradas, que é ele, Bidault, que está torto”.
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