domingo, abril 06, 2014



AS IMPOSTURAS DA POESIA


Falemos de uma coisa que interessa a pouca gente: a poesia. Sabemos muito bem, pelo menos desde a segunda metade do século XIX, que esta falta de público a ameaça e a protege. O pretexto é o último número da Relâmpago (uma louvável revista de poesia da Fundação Luís Miguel Nava, que já vai no nº 33) que, sob a forma de respostas de poetas e críticos a um inquérito, apresenta um vasto dossier sobre “o estado da poesia”. É uma questão recorrente: estes balanços tornaram-se desde há mais de um século consubstanciais à própria prática da poesia. São várias as suas declinações: o estado da poesia, a situação da poesia, o lugar da poesia, a crise da poesia, para onde vai a poesia?, ou até, como ousou uma revista francesa há mais de duas décadas, “A forma poesia irá, poderá e deverá desaparecer?” (também aqui se tratava de um inquérito). Mas, nas suas diversas formulações, o que sempre se manifesta nesta sociologia espontânea é a situação crítica e precária da poesia, embora nenhuma outra forma de existência lhe seja concedida pelo menos desde que Hölderlin proferiu o “para quê poetas?”. Mas o tópico do “estado da poesia” é quase sempre a expressão de um enorme amor pela poesia e de um receio que o seu presente seja de degradação e não esteja à altura de épocas anteriores - e este dossier da Relâmpago, nas perguntas que formula, mais do que nas respostas que recolhe, não é excepção. É certo que nem todas as épocas se equivalem, tanto na produção poética como em tudo o resto. Mas não é isso que me importa aqui discutir. A minha atenção incide, antes, na subtil reconstrução, invertida, de um tema que ganhou a forma de um quase-manifesto nada virtuoso contra as “imposturas da poesia”. Les Impostures de la Poésie é um pequeno livro de Roger Caillois, publicado em 1945, cujo capítulo inicial se chama precisamente “Situation de la poésie” e que começa desta maneira: “Se é a ocasião para uma confidência, direi que me senti sempre muito mais disposto a combater a poesia do que a abandonar-me a ela”. As “imposturas da poesia” eram, para Caillois, as da complacência (que ele identificava com um lirismo), as do esquecimento do poema como um pensamento do contra. E, nesse aspecto, ele foi acompanhado pelo “ódio da poesia”, do seu contemporâneo Georges Bataille e, mais tarde, por Gombrowicz. Mas não é preciso recorrermos aos exemplos extremos destes escritores que, enquanto tal, nunca quiseram prestar grandes honras aos impolutos desígnios da República das Letras. Desde sempre (e o célebre verso do poeta provençal, o rei Guilherme IX de Aquitânia – “farei um verso de puro nada” – tem um sentido fundador) a poesia manifestou uma espécie de desejo auto-erótico. Este auto-erotismo da poesia occidental transferiu-se de um plano imanente – interior à própria poesia, aos seus engendramentos – para o discurso sobre ela e os modos de a representar socialmente. Temos assim uma longa história em que quanto mais se assiste ao enfraquecimento da irradiação social e cultural da poesia mais ela é objecto de celebração e de auto-sacralização. Podemos assim dizer que os piores inimigos da poesia não são os que acham que ela é uma inutilidade obsoleta (contra esses, tem ela os seus escudos) mas os que a celebram para a recomporem num estado teológico-poético. Toda a história da poesia moderna nos ensina que o amor da poesia é o que de mais pernicioso existe para ela. O dia mundial da poesia é uma consagração universal desse amor, celebra-a na sua ideia e no seu mito. Exalta-a no seu “estado” eterno. 

- António Guerreiro
in Ípsilon (4.04.2014)


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