domingo, fevereiro 09, 2014

Um azul mais penetrante


 
Daniel Jonas, Passageiro frequente, Língua Morta, 2013.

 

Daniel Jonas começa por cantar o homem em escombros através de uma epígrafe de Townes Van Zandt, e logo no primeiro de cinquenta e oito poemas, faz reunir os fragmentos de uma memória de onde se ausenta toda a auto-comiseração. Nesse mundo, a glória só poderá ser o resultado de um jogo irónico com a opacidade que está em cada um de nós.

 

A poesia desloca a nossa atenção, afinal, para dois dados essenciais: a implacável destruição que se faz inscrever na biografia e a resignificação da estranheza do que julgámos próximo, e que se faz distante, incompreensivelmente distante. A poesia é uma operação no escuro que tende a revelar a irracionalidade que nos protege da perigosa mistificação que quotidianamente nos rodeia, mesmo quando olhamos ao espelho e transigimos com a superfície melancólica do nosso rosto. O que nos olha é a pureza desse abismo, é a incompreensão deslocada pelo espelho, é a sombra da nossa condição trágica que só poderá ser perseguida elíptica, indirectamente.

 

O que Daniel faz, logo de entrada, é devolver-nos esse olhar de abismo que está no rosto e no espelho do que nos confronta. Construímos «um telhado / para os dias inglórios de colmo» (p.7) Olhamos esses esplêndidos dias, esses dias prometidos, fitamo-los «fixamente» e o brilho devolvido tem a sabedoria de um «repentino encontro com um velho conhecido / que julgara não se haver perdido de vista» (p.7). Cada um de nós foi aprisionado nessa «teia» do reconhecimento. Toda a promessa de transfiguração é o resultado de uma aflição permanente, uma ameaça ou armadilha que nos dilacera. Espelho e teia são, pois, convocados desde o início, e, de maneira certeira, espelho e teia, rosto e morte, cruzam-se. Em «Escher ou o tempo», Daniel escreve: «Estranha aranha / do seu sapateado no tecto / descendo // ou subindo / sapadora pelo seu poste / de baba // até mim / talvez curiosa / destoutra teia / no meu rosto» (p. 9). Teia, o tempo promete-nos à paralisia. Aterrorizados esperamos passivamente a sua funesta desenvoltura, o seu trabalho de linhas intrincadas e fugas dilacerantes apertando-nos o rosto.

 

O tempo condena-nos à desfiguração. No tecido desse precipitado, dessa «estase» (magnífica palavra que surge sem aviso em «Uma perda observada»  [p.10]), o poeta é como uma animal voraz devorando a sua própria morte, em meditação e autofagias, alimentando o seu cerco de linguagem, o seu canto ou a sua íntima sugestão de canto, fazendo deslocar restos, sinais, vestígios ou «blocos». Escreverá, muito lá adiante (p.52): «Blocos e mais blocos / de destruição criativa.» Mas desfie-se este Passageiro frequente pelos primeiros poemas, outra vez, e encontraremos este assoreado gesto do tempo agónico em «Agnus Dei»: «Diante deste anho, / ali, no lugar de tias e tios, / o matadouro foi-se sentando / ano a ano.» E uma nota sacrifical, suspeitosamente redentora, assoma aí.

 

Daniel é um poeta que parece jogar o perigoso jogo de enfrentamento da tradição e das suas narrativas maiores, para nos remeter de novo à melancolia desencantada do mundo, mas agora dubitativa, indecisa, dilacerantemente truncada pelas figurações trágicas que nós, os modernos, recusámos. E nada melhor que a estranheza macademizada como revelação de qualquer coisa que atravessa a história – «uma fraca força messiânica» haveria de escrever Walter Benjamin na sua segunda tese sobre a filosofia da história[1] –, o brilho escondido da duração.

 

Em «Eléctrico» (pp. 13-14), a urbe é ainda habitada por misteriosas analogias clássicas, vibráteis de poderes, reverberando a impiedade, o saque e o sangue: «Subitamente detida pela melancolia do eléctrico / assomando na curva / interpondo-se entre mim e o passeio / que eu queria, a minha tarde / como Heitor ante Aquiles ali tombava / como um saco de músculos / sobre o rasto de sangue no poente.» (p.13). A urbe é o espaço irreal que Baudelaire e Eliot consagraram, capaz de, num anódino instante, esclarecer a escuridão essencial que habita o poeta atavés da súbita emergência de uma figura feminina que conduz um carro eléctrico: «E todavia este uma graça o conduzia / tão cândida e maternal / naquele tríptico frontal / a Nossa Senhora o conduzia / como a guarda-freio da minha infância, / figura da renascença / emoldurada atrás do pára-brisas central / como um altar do que fui / para a alteridade do que sou.» Uma revelação profana poderá ainda abeirar-se de nós neste caminho quase arcaico de um eléctrico percorrendo a pele da cidade, a luz cendrada da memória: «Disse: Madonna! / enquanto o carro assomava na ladeira / e desaparecia na curva, / cuspindo uma débil faísca / imponderadamente abandonada / como restos de um milagre.» (p. 14). A presença da cidade e da máquina refaz a nossa certeza desse mundo que nos disseram sem milagre, esse mundo onde todo o milagre é resto e onde nos inquietamos, e porque nos inquietamos, nos predispômos à invenção de uma linha que vá ao encontro da misteriosíssima duração. Como Álvaro de Campos, que percorre, eternidade adentro, a estrada de Sintra, ao volante de um Chevrolet emprestado, fazendo quebrar o letárgico da história, repondo o tempo da vida, fazendo-o estilhaçar numa relatividade de pontos de vista que denunciam a mentira de chronos, Daniel actualiza essa meditação e o seu valor simbólico numa viagem de autocarro: «Ires ao fim do mundo é chegares / ao princípio do que partes. / Ah, autocarro, tudo é  sensação, / até tu que não passas de símbolo de ti // e tu passares um simulacro, / que és espectro de ti mesmo, / e parares dares a volta ao mundo // pois tudo é princípio e fim / e volta sem passagem.» (p. 16).

 

Mas dir-se-ia que o jogo aqui não é tão-só o da fragmentação de pontos de vista que reconhecemos nesse esplêndido exemplo da inquietação modernista que é «Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra», mas o da reversibilidade consagrada por Eliot em «East Coker», o segundo momento de Four quartets: «In my beginning is my end», mesmo se Daniel, cumprindo o seu talento de jogral, nos diz, a dado o momento, o contrário disso mesmo: «Não encontres o teu fim no teu princípio, fim no teu fim.» (p. 63)

 

O que está aqui em causa é o modo como a poesia pode ainda operar num mundo que se nos afigura feito de superfícies, de transparências, de certezas claras. Importa repor uma porção de estranheza. É isso que Daniel faz. O mundo é reenergizado através de uma ilegível vontade, onde se escurece o que se ama, ou se é escurecido pelo que se ama. Escreverá o nosso poeta: «Quem ama anoitece» (p.61). Condenado à improvável literalidade – que é também o território da morte e da certeza –  Daniel refugia-se habilmente no apocalipse da uma intenção irónica que rasga a experiência, que a alimenta de possibilidade e de perigo. Ele mostra-nos como talvez o entardecer, o crepúsculo que se anuncia, poderá ser dobrado pela radiosa manhã da linguagem. De alguma forma, Passageiro frequente não é outra coisa senão isso mesmo, um assalto à ordem de um mundo sem espessura. Em «Casas», o poeta sonha com casas, mas o que realiza é uma transfiguração dessa ordem, dessa literalidade pobre que se faz inscrever na linguagem e na experiência. À história entendida como território de rasura da experiência, Daniel faz opor a duração do voo, que é também violência sobre a palavra, sobre as suas possibilidades semânticas e sintáticas, numa espécie de abandono rigorosamente vigiado: «Eu sinto o coração das casas / e voo-me para delas dentro / como um pássaro que mergulhe na vidraça / e entre num azul mais penetrante» (p. 17). No seu devir-pássaro, como lhe chamaria certamente Deleuze, Daniel exorta o inanimado e a gravidade, e diz: «As casas. Condenam-me a não serem minhas. Bah! Condeno-as a não terem asas.» (p. 18). Reenergizar a linguagem, pois, regressar às suas propriedades mágicas, a uma lógica da participação de que se ausentou a modernidade desencantada e depois aviltada.

 

Na exuberância da dicção, no modo como interroga a palavra em uso, Daniel procura o que terá precedido a dissociação da sensibilidade de que nos fala Eliot em «Os poetas metafísicos».[2] Poucos poetas o poderão fazer neste presente de empobrecimento generalizado da linguagem. E os delírios isabelinos de Daniel deverão ser tomados como um resgate de qualidades e de intensidades expressivas que os grandes modernos (Eliot e Pound são aqui decisivos) pretenderam instaurar, alimentando-se dessa anterioridade constituída por Cavalcanti, Dante ou Donne.

 

Se está «insularmente imerso  / nesta penúria» (p. 19), o poeta é  porém o «passageiro frequente» da tradição, indisciplinando-a, experimentando perigos e escolhos, numa declinação pelo risco que me parece incomum entre os nossos contemporâneos. O poema que dá título ao livro, «Passageiro frequente», é assim uma reiteração desta incerteza cultivada e, talvez, programada: «tardiamente chegado dos subúrbios /ao coração de tudo, ao cento de tudo, ao centro das coisas (...) Ele anseia por um lar / deixadas que foram várias casas bombardeadas / e a sirene infernal de alerta máximo / zumbindo nos corpos calcinados / dos lentos catres / onde as plúmbeas contorções / dos corpos são cubistas e cubistas / os catres sobre eles. // Ele está muito a tempo de alguma coisa / embora as pernas lhe vacilem, / apenas passou de além / para aqui com um fito / indeterminado, um modo de fazer sentido / sem a senha do passado necessário, / sem a cicatriz social, / sem um alinhavo de perfídia. / Este é um passageiro frequente dos faux-pas. / Uma prostituta faria os seus avanços / com mais segurança.» (pp. 23-4) Neste mundo onde o excesso poderá ser um expediente para outra coisa, a poesia assinala porém a perda do que é incomensurável, da experiência falhada, esquecida, apagada.

 

Daniel é, nesse sentido, um poeta das imagens, como elemento de captura e de violência ou incisão. A evocação da «Nostalgia» (p. 24) como expediente de reafirmação do perdido é um caso em apreciação: «Perder uma fotografia / é perder / um momento / duas vezes.» Uma poesia que não se furta à perda, mas que, porém, procura realizar um movimento em direcção a essa outra coisa que poderá ser o irrepresentado, que surge num poema como «No parque»: «Um galho parte e / tememos pela perna frágil / do gracioso gamo.» (p. 35)  Há assim uma eficácia no irrepresentado a produzir os seus efeitos neste Passageiro frequente.  Dir-se-ia que somos conduzidos por uma furiosa paixão pelos limites da representação, sendo Daniel, também, um poeta das perversidades escopofílicas de uma contemporaneidade embriagada pela imagem. «Noite de prata» é, por esse lado, uma meditação  com um sentido ético e político preciso: «Os Einsatzgruppen dos paparazzi / apontaram a sua mira, / focaram o seu alvo, / dispararam o seu obturador / e essa foi a prévia morte. // Aquela ali que nos olha / morreu / sob o disparo daquele gatilho / escopofílico. / A frieza do repórter / ante a inocência da sua vítima / para sempre congelando / no instantâneo / o seu cadáver pre mortem. // Quando olho o terrível fotograma / ouço a mesma inclemência / das armas de repetição. / Olhar é ouvir. // Antes das balas / estes foram exterminados / na noite de prata / da câmara escura.» (pp. 26-7).

 

Deus não está ausente deste tempo sem espessura, mas será, antes, esse omnisciente impotente que surge em «Presciência» (p. 28). Deus, ou o poeta no seu lugar, contempla impotente o mal, e toda a metafísica do mal ganha então uma tonalidade rara: o mal não terá origem, e será tão-só uma função de uma imobilidade que tolhe todo aquele que se abastece de imagens. Daniel faz associar a virtude ao gesto destrutivo do iconoclasta. A vida, prisioneira de representações, pede a imobilidade da pedra. «A educação pela pedra», como diria João Cabral de Melo Neto, é o que comove e alicia genuinamente, porque nos leva a desconfiar da aceleração e da imediatez que parece contaminar todas as enunciações do presente.

 

 

Luís Quintais, Fevereiro de 2014




[1] Walter Benjamin, «Theses on the philosophy of history», in Illuminations, Londres, Fontana Press, 1992 [1970], p. 246.
[2] Eliot, T. S. (1992) Ensaios escolhidos, Lisboa, Cotovia, p. 29.

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