sexta-feira, fevereiro 07, 2014




AS EVIDÊNCIAS EDITORIAIS



Depois da concentração editorial, veio a concentração autoral; e à “traição” dos editores, seguiu-se a “traição” dos autores. E assim o corpo editorial pariu um gigante chamado Porto Editora que tende para o oligopólio da “cadeia do livro”, da produção à comercialização, passando pela difusão, enquanto a Leya parece perder terreno. Já não se trata de concentração, mas de sobreconcentração; e já não são as leis do mercado a funcionar, pois o mercado, neste caso, foi para além dos seus próprios fins e anulou-se enquanto tal, liquidando o primeiro factor que, segundo a ordem da economia capitalista liberal, o faz existir: a concorrência. Tal coisa chamada concorrência é uma comédia teatral. Através das várias chancelas editoriais que detêm, a sobreconcentrada Porto Editora e a cada vez menos concentrada Leya encenam, no seu interior, o espectáculo da concorrência que permite salvar as aparências. Na semana passada, a grande cena operática foi a passagem de José Saramago – ou seja, dos seus livros, mas esta deslocação retórica é inevitável - da Leya para a Porto Editora. O pathos trágico da cena é o culminar de outras deserções menos enfáticas, mas, ainda assim, carregadas de índices que entoam num grande coro. Devemo-nos abster de interpretar em chave alegórica a transferência da obra de Saramago. Se há nesta história alguma saramaguiana alegoria, ela conheceu a sua elaboração alguns anos antes, quando a Caminho, uma editora ligada desde a sua fundação ao Partido Comunista, foi comprada pela Leya. Podemos pressentir que a única relação “legítima” e originária que a obra de Saramago ainda mantinha com a Caminho, nesta nova fase, residia apenas numa relação profunda com a pessoa do seu editor (esse homem respeitável e de grande classe que é Zeferino Coelho) e não com a empresa editorial em que este foi integrado. Mas, entretanto, num palco das traseiras, quase deserto, para onde a Leya já só convoca o staff da liquidação e da limpeza, tinha lugar uma cena muito mais interessante. Essa cena não tem nada de operático, não oferece golpes editoriais que se tomam por obra de arte total. Consiste apenas num passo inesperado que é uma outra forma de arte, liberta do aparato Kitsch, em torno de um lago de cisnes, do bailado editorial: Manuel Gusmão, considerado um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, começou a reeditar os seus livros nas edições Avante. O primeiro volume de “Poemas Reunidos” recolhe os seus dois primeiros livros e intitula-se Contra Todas as Evidências. Contra todas as evidências (a não ser a evidência de o autor ser do Partido Comunista) as edições Avante publicam uma obra poética das mais densas, menos transparentes e menos apropriáveis por qualquer noção de “engagement” e de instrumento ideológico. Impunha-se a reedição dos livros de Manuel Gusmão porque eles tinham desaparecido. Não porque se esgotaram, mas porque lhes foi dado o destino de papel guilhotinado. Isto sim, é uma alegoria. Uma alegoria da “nova normalidade” editorial: a captura da palavra literária já não é feita pelos meios ideológicos e partidários de outrora, mas pela lógica empresarial perversa – porque nem sequer respeitadora das leis do mercado - que governa hoje a edição, distribuição e comercialização dos livros. A canibalização da Leya pela Porto Editora é apenas o acto final de um processo em cadeia que se desenrola há alguns anos. Infelizmente, os registos desta “estação meteorológica” não deixam prever um verdadeiro abalo sísmico, à altura das necessidades.

 - António Guerreiro
in Ípsilon (07.02.2014)   

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