domingo, novembro 03, 2013



DA COMPORTA ÀS AVENIDAS NOVAS


Numa entrevista que pode ser lida neste caderno (pág. 16), o escritor Claudio Magris diz que a Itália – esse laboratório de experiências políticas e sociais – assistiu na era Berlusconi ao triunfo de uma lumpen-burguesia “que tanto no plano intelectual como moral perdeu o sentido da decência e do respeito”. Esta categoria da lumpen-burguesia não é uma invenção de Magris, mas ele dá-lhe um novo sentido: é uma classe que vive a euforia de uma nova inocência porque a vergonha, o mais íntimo sentimento do Eu, é um bem que ela não possui. E por isso é incapaz de experimentar qualquer sensação de embaraço. Muito mais comum, quase planetária, era a pequena burguesia, essa não-classe que, na perspectiva dos críticos da ideologia, encarnou pecaminosos desvios. Como sempre aconteceu com as criações do laboratório italiano, também a lumpen-burguesia se difundiu por todo o lado como um filme publicitário. Podemos hoje encontrá-la, entre nós, expondo-se na sua vacuidade, da Comporta às Avenidas Novas. Quem lê jornais não pôde deixar de assistir, nos últimos dias, ao espectáculo obsceno de uma guerra conjugal entre uma apresentadora da televisão e um ex-ministro da Cultura. O assunto é mesquinho, mas revelou algo que convém notar: até jornais com um respeitável passado se comportam perante a imundície jornalística como a esquerda francesa face à extrema-direita: seguem-lhe o rasto para não ficar para trás. Em matérias deste tipo, um jornal como o “Expresso” – que abriu as suas páginas a esta fantasmagórica miséria, fazendo de conta que o assunto é tão conspícuo que não há maneira de fugir dele - tem funcionado desde há muito tempo como um posto experimental. E isso explica o seu sucesso e mostra os instrumentos de que se serve para cavalgar a superfície do tempo. Veja-se como ele concedeu lugar cativo – não exclusivo, porque é feito de muitos estratos que se relativizam e suavizam os efeitos uns dos outros - aos gestos e aos gostos desta lumpen-burguesia e passou a reconhecê-la e a atraí-la. O “Expresso” segue a receita de um eclectismo que promove a convivência pacífica da estupidez e falta de vergonha desse lumpen com o pudor e a “bienséance” de uma burguesia mais ou menos cultivada, mas à qual não se pode pedir mais do que sentir vergonha sem mal-estar, o que significa que nenhum sobressalto crítico a poderá mover. O preço a pagar por este programa contraditório é o de fazer sentir a alguns leitores menos dóceis que o jornal se libertou há muito tempo das suas origens, encarou como velhas relíquias algumas tarefas e interdições, lançou às urtigas uma responsabilidade e uma cultura crítica que, de algum modo, causam atrito. Mas o ganho, como se vê pela sobrevivência confortável em tempos difíceis, tem sido evidente, e contra todos aqueles que sempre acharam que um tal aggiornamento era desastroso, o “Expresso” prova que, em tempos de ascensão da lumpen-burguesia, ele está perfeitamente à altura da sua época. Do Verão azul da Comporta às imundícies negras das Avenidas Novas, o seu raio de acção é amplo e ele sabe que não tem que se envergonhar por conviver com lixo público conjugal (sobretudo quando ele é produzido por quem é) nem tem que, por razões metodológicas, colocar tacitamente esta pergunta aos seus leitores: “Qual é o limite a partir do qual sentem vergonha?”. Tal pergunta implícita abriria uma fissura entre a lumpen-burguesia, que ele acarinha e o acarinha a ele, e uma classe de leitores que, embora relutantes, regressam todos os sábados para uma oração matinal.

 - António Guerreiro
in Ípsilon (1.11.2013)  

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