domingo, novembro 03, 2013


Anastácia falava horas a fio, sempre gesticulando, tentando imitar com os dedos, com as mãos, com o corpo, o movimento de um animal, o bote de um felino, a forma de um peixe no ar á procura de alimentos, o vôo melindroso de uma ave. Hoje, ao pensar naquele turbilhão de palavras que povoavam tardes inteiras, constato que Anastácia, através da voz que evocava vivência e imaginação, procurava um repouso, uma trégua ao árduo trabalho a que se dedicava. Ao contar historias, sua vida parava para respirar: e aquela voz que trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se poupar, que inventava para tentar escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do martírio. Emilie deixava-a falar, mas por vezes seu rosto interrogava o significado de um termo qualquer de origem indígena, ou de uma expressão não utilizada na cidade, e que pertencia à vida da lavadeira, a um tempo remotíssimo, a um lugar esquecido á margem de um rio, e que desconhecíamos Naqueles momentos de duvida ou incompreensão, de nada adiantava o olhar perplexo de Emilie voltado para mim: permanecíamos, os três, calados, resignados a suportar o peso do silencio, atribuído aos “truques da língua brasileira”, como proferia minha mãe. Aquele silêncio insinuava tanta coisa, e nos incomodava tanto...Como se para revelar algo fosse necessário silenciar. Para Emilie, talvez fossem momentos de impasse, de aguda impaciência diante da permanência da duvida. Mas era Anastácia quem rompia o silencio: o nome de um pássaro, ate então misterioso e invisível, ela passava a descreve-lo em minúcias: as rêmiges vermelhas, o corpo azulado, quase negro, e o bico entreaberto a emitir um canto que ela imitava como poucos que têm o dom de imitar a melodia da natureza. A descrição surtia o efeito de um dicionário aberto na pagina luminosa, de onde se fisga a palavra-chave; e como sentido a surgir da forma, o pássaro emergia da redoma escura de uma árvore e lentamente delineava-se diante de nossos olhos.

- Milton Hatoum
in Relato de um certo Oriente, Cotovia

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