I
Na beira do caminho, um achado
que diríamos macabro, se não fosse
apenas natural: um gato morto.
Vêem-se dentes arrepanhando a boca
e as pupilas despojadas do fulgor de outrora,
que não deve ter tido tempo de pôr a recato.
As formigas já se aperceberam.
II
Sentindo perto a hora
de desvendar o corpo à morte,
afastou-se da aldeia para morrer.
Sabia de saber antigo que a natureza
é ainda o melhor cenário
para reentrar nela.
Agora está ali parado o que foi esquivo.
Mas já não está.
Já só para não complicar é que
se pode chamar gato
àquela massa envolta em pêlo,
em vias de fusão,
devassada de formigas.
Donde se ausentou o que quer que fosse
que fazia dela um gato.
III
Como fazíamos quando éramos crianças
ao ver um bicho morto,
cuspo-lhe em cima e prossigo o passeio.
Com cheiro a gato morto e a formigas
nas narinas da alma.
- A. M. Pires Cabral
in Gaveta do fundo, Tinta da China
Sem comentários:
Enviar um comentário