quinta-feira, novembro 21, 2013

Gato morto


I

Na beira do caminho, um achado
que diríamos macabro, se não fosse
apenas natural: um gato morto.

Vêem-se dentes arrepanhando a boca
e as pupilas despojadas do fulgor de outrora,
que não deve ter tido tempo de pôr a recato.

As formigas já se aperceberam.


II

Sentindo perto a hora
de desvendar o corpo à morte,
afastou-se da aldeia para morrer.

Sabia de saber antigo que a natureza
é ainda o melhor cenário
para reentrar nela.

Agora está ali parado o que foi esquivo.
Mas já não está.
Já só para não complicar é que
se pode chamar gato
àquela massa envolta em pêlo,
em vias de fusão,
devassada de formigas.

Donde se ausentou o que quer que fosse
que fazia dela um gato.


III

Como fazíamos quando éramos crianças
ao ver um bicho morto,
cuspo-lhe em cima e prossigo o passeio.

Com cheiro a gato morto e a formigas
nas narinas da alma.

- A. M. Pires Cabral
in Gaveta do fundo, Tinta da China

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