sexta-feira, outubro 11, 2013

Não fumar pode matar, pelo menos de tristeza


Chove como se o não tivesse feito no último século
e somente me resta um cigarro.

"Ires-te embora é como ficar sem tabaco num dia de chuva"

É meio-dia e Ana continua dormindo
bebemos muito, demasiado,
começámos com rum, depois vodka,
mais tarde aquele líquido verde impronunciável
que matava quinze dores a cada trago.
Eu tinha duas mil quinhentas e cinquenta e cinco
e Ana infinitas.

A casa cheira como se tivessem estado
a coser feridas durante toda a noite.

Ana nem sequer trocou de roupa.

- Assenta-me bem este vestido?- Perguntou.
- Não há nada que te assente mal querida- Disse-lhe.
Se bem que fosse mentira,
a Ana o que lhe assentava melhor era a nudez.

A maior parte das vezes a mentira
é o atalho mais curto para a felicidade.

A chuva ameaçava não parar,
o que antes eram pequenos charcos,
tinham-se convertido em profundos lagos,
lembram-me os olhos de minha mãe
quando o meu pai morreu de inércia.
Também me lembro de Laura
mas quando há sol também ela me visita a memória
e quando está nublado,
inclusive quando o homem do tempo
não sabe que merda colocar no mapa
também lá está ela.
A realidade é que me recordo sempre de Laura.

Ana tem a teoria de que pensar noutra
também poderia chamar-se infidelidade,
por esta altura eu devo ser
o homem mais infiel deste planeta.

No umbral da porta ela boceja,
parece que guerreou com dez gatos.

- Deverias fazer-me amor e o pequeno-almoço por esta ordem - Diz.
Há muito que não fazemos amor,
antes quando ela não se chamava "meu amor"
nem eu "gordinho" tudo era diferente.
Dez minutos depois já não guardo nada no depósito,
ela bebe café e fuma o meu cigarro.

Que lhe quero é indiscutível, mesmo que o reprove.

Na mesinha da sala há revistas
com cinquenta maneiras úteis para deixar de fumar
e nenhuma se chama Ana.
Nenhuma diz:
"Casa-te com uma fumadora e que ela fume a tua parte"
Tão-pouco diz como esquecer alguma Laura
nem que fazer quando a chuva te encharca os pulmões.

- Que fazes?- Pergunta.
- Penso-
- Gostaria de saber o que pensas, quando não pensas em mim-
- Não te agradaria, acredita- Digo-lhe.

Este é o momento em que ela põe a cara
de me odiar para sempre ou até que a beije.
Beijo-a. Duas vezes.

- Quero fumar- Exige.

E enquanto visto o capote
das tristezas para sempre
e um relâmpago atravessa a cidade
eu sem guarda-chuva numa rua sem nome
procuro uma tabacaria aberta.

- Ernesto Pérez Vallejo
(tradução de José Eduardo Simões)

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