sexta-feira, outubro 11, 2013

Sangue inverso


Há pequenas histórias que não se deixam
acabar, insistem connosco, querem-nos
de volta. Recordações que se amotinam
e misturam
entre o bafo de cama e as
dores do ferro que fez música de uns
restos de desejo. À superfície ficava
um bando de gestos desamparados
e o riso escarninho dos objectos que
nos fixavam impiedosamente. Passam-se
semanas, e é tudo. Recupero o quarto,
deixo de ler sobre o ombro dela, ansioso
por saber se esta ou aquela passagem
lhe disseram tanto como a mim.
Devolvo a ordem ao mundo. No chão,
uns quantos romances, leves, lúcidos,
e os livrinhos de versos a cochicharem
javardices, isso que por aí tacham de real.
Subindo enfim à altura do peito,
as grandes fugas à literatura: biografias
delirantes, ferozes relatos de subidas
ao inferno, cartas de rumo no balanço de
mares colossais ou os rumores obscenos
que vêm à tona depois de grandiosos
naufrágios. Oiço o que chove lá fora,

aquela lentidão poderosa que comoveu
Borges, e nesta página arbitrária deito
traço sobre um movimento que galopa,
surdo e secreto, como mancha de sangue
inverso, a adolescer de irrealidade.
Toma-o uma vontade vadia e colhe ruas
nesse andar somado de passos meio
inconscientes a agarrar as distâncias.
Vou-me a rondar pelas estações, a apanhar
os comboios, a deambular
sem nome e mesmo
com a sombra perdida, levando já uns dias
de atraso. Perco-me noutros, cruzo-me
comigo, replicado em simetrias cruéis,
ecos mais fortes que o estampido que
os despertou. E então sigo-os. Repara
neste, com ar de engenheiro desvairado,
a deitar contas às janelas: luzes e ausências,
histórias para as pedras que endoidece
nos bolsos, desfazendo-lhes o juízo e a frieza
para atiçar voos de violenta elegância.
Traz já umas cinco luas naquelas notas
aguerridas em que vai repetindo para si:
Tens razão, minha Loucura, tens razão.

Contra um fundo de luzes vencidas,
a noite cai de joelhos e olha, lá no alto,
o seu firmamento líquido fluindo em
melodia sedativa
. É só isto e uns passos
mais entre a brisa alcoolizada, quando
o medo de dormir sozinho se põe
à porta dos bares a espreitar
os últimos corpos. E é nesta hora que
nos somos mais estranhos, desesperados
por achar alguém que descubra algo
de familiar em nós.

1 comentário:

Ines Cisneiros disse...

Gostei muito. Muito bom.