quinta-feira, outubro 10, 2013


Não faço a mínima puta de ideia de onde estou. Nem é que tenha já acordado no meio disto, pior, é que simplesmente as imagens que tentam coser-se da fragmentação em que tenho a cabeça a latejar não me oferecem a confiança de se tratarem de memórias. Podem mesmo não passar de retalhos de episódios esquecidos que esta dor de cabeça lança sobre a mesa para me manter focado nalguma coisa menos perturbadora do que a sensação de que estou metido na mais merdosa das enrascadas. Há um carro que me é vagamente familiar, e dá-me a impressão de que vim umas horas num sono atacado de todos os lados e esparramado no banco traseiro. Devo ter apanhado uma sova dos diabos, ou pelo menos sinto o corpo como se o tivesse encontrado na berma de uma estrada, depois de atropelado algumas vezes. Até me assusta levar as mãos à cara. Passo a língua aqui e ali e sabe-me o sangue. Olhei-me de raspão num ou noutro reflexo mas não quis enfrentar o estrago de frente. Com tudo isto, e no desespero que se embala em mim, não deixo de sentir um certo alívio. É estranho, mas se ainda não consegui alinhar factos e contar-me a história dos últimos dias, parece-me claro que alguma coisa podia ter corrido pior e não correu. Não contava safar-me do que quer que tenha sido o pesadelo que me largou aqui neste estado.
Não tenho nada comigo. A roupa meio húmida, pesa, quase magoa. Está um frio que é uma porra. Outra. Passam um ou outro carro mas ainda não me decidi a fazer nada de drástico. Eu não parava por mim, pelo menos não hoje, se passasse por aqui. Em volta nada me diz grande coisa. Entardece furiosamente e eu parece que estou agora a multiplicar-me na minha cabeça. Uma esquizofrenia à medida que me descrevo as coisas e começam a chegar um bando de leitores de partes incertas. Uns sacanas desconfiados, gente ainda mais estranha do que eu me sinto agora. Tenho a cabeça pesada como tudo e não sei o que raio querem que vos diga.
Tenho um nome: Sílvia. Não é meu, obviamente. Vai e volta insistentemente mas sem nunca me trazer nada de novo. Julgo que lá para a frente vou bater nalguma memória, mas pode ser também só uma canção ou algum filme. O que anda comigo também é uma melodia a pedir assobio. Se não tivesse os lábios desfeitos tentava fixá-la, mas assim só quero é que deixe de me atazanar.
Daqui a nada alguma coisa há-de fazer sentido. Tenho uma saudade danada de alguém. Ao longe, uma voz que me é querida. Sinto-me miúdo e nunca quis tanto que me encontrassem.
Estou a pensar se me chego ao meio da estrada. Já não tenho mais braços para estes tímidos acenos a implorar que algum destes cabrões se aperceba do horror em que estou afundado. Isto não deve andar muito longe do que sentirá um gajo que por uma razão qualquer dá por si à deriva em alto mar sem nada de firme onde pôr a vista. Apenas aquela linha a toda a volta, indiferente ao nosso olhar suplicante. Ninguém quer saber. Causa-me tanto espanto como é absolutamente natural. Afinal, quem caralho sou eu? De fora não devo estar mais apresentável que um vagabundo qualquer, ainda por cima com o ar atordoado que vestem os doidos quando andam à caça de alguém que se deixe engolfar nas aventuras delirantes que trazem na alma, esses catálogos do destrambelhamento. Às vezes toca-me esta vontade de me ser eu próprio indiferente e largar-me aqui como quem larga um livro. Que se lixe. Sento-me e logo se vê. Não tenho sono, mas o cansaço e dores têm-me tão apertado que sinto que podia passar umas horas aqui só encostado a um gemido sem mais ideias.
Dá-me a sensação de que ainda vos vou confessar umas coisas medonhas, outras apenas disparatadas, tudo inventado, só para jogar os dados e ver se avanço na direcção da verdade. O que tenho como certo é que fui apanhado, e alguma coisa muito estúpida fiz para estar agora aqui a tentar reunir algumas pistas à volta deste caso ridículo que é a minha consciência não me querer dizer quem eu sou. Estou-me a perguntar: Que merda foste tu fazer desta vez? E, sim, não me parece que a trepa que levei seja apenas um castigo que me deram, há este pressentimento de que eu próprio me estou a castigar ou, então, a poupar-me de ter de ouvir de mim mesmo alguma notícia desoladora sobre o gajo que eu sou. Não me parece sequer que isto seja inédito. Estou aqui a andar à roda da ideia de que já me aconteceu isto antes. A merda é que, se calhar, se as coisas começarem a fazer sentido só vão piorar.
Por esta altura já se terão dado conta, como eu me dei há um bocado, de que me estão a voltar os contornos do estafermo que eu tenho lá atrás e já aí está a fazer-me sinais, à minha espera, assim que todo este caos me venha com as suas justificações.

1 comentário:

violeta13 disse...

este seria um texto que gostaria de ter na boca, fosse eu homem.
que ritmo extraordinário!
obrigada. :)