sexta-feira, setembro 13, 2013


Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo
um corpo já não tem imaginação
não tem paciência com nenhum outro corpo


Henri Michaux


Foi-se o coração do quarto e eu fiz um
buraco no meio da realidade por onde
os vejo passar, encharcados, fugidos
lá de só-deus-sabe. Segredamo-nos
com gestos de muito longe, assentimos.
Fundam rastos firmes nesta terra,
hoje fraca, e cheiros lentos, alegrando
a aragem morta. (Que desvio triunfal
ao destino pulha que nos conta os dias.)
Com os loucos, perdida e docemente
no avanço tardonho e entre jardins amenos,
bater à porta da noite vertical e arcaica.

As ninfas passam em bando, para trás,
como sombras, putas de tambor vincam
as esquinas das zonas de guerra onde
se entrincheira o desejo mais
humilhado. Exércitos disfarçados aguardam
ordens no encalhe dos cafés, eu só mastigo
umas hesitações
enquanto os meus olhos,
como dois rafeiros, raspam o fundo de
outros olhares. Perdidos,
estagnados. Tudo lento e asmático,
entre a encenação fumarenta
assistimos ao can-can das moscas.

É sempre de noite na memória que roubo
aos dias: um espelho erguido a medo
entre corpos, um espelho que se inunda,
que num instante se embaça do fulgor
desta carne entreaberta a eras passadas.
Ouço remos forçar as águas, empurro
o meu barco esguio sobre o brilho
de um traço de cuspo a ver se amanheço
noutro mundo. Cansa-me a puta desta
solidão implacável, atenta a cada gesto.
Aos ombros leva-me a cabeça numerosa,
as infernais discussões, votações e a
revisão ponto por ponto da minha
defesa face a um tribunal da menor
instância possível. Arrumo os papéis
e venho de lá a respirar pelo buraco
do peito, baixinho, canto-me
cinzas e vejo-a sempre ali, em frente,
naquela pele de sol, corpo de caroço,
e esse perverso pudor da mulher-criança
(seios breves, corpo breve, toda ela breve).
Se eu vinha de amores que me
ensinaram a ter maneiras, ela parecia
descolada das fitas do Godard que viu
no lugar dos clássicos da Disney.
E da vaga que me abriu lá no peito
apenas me ficou a sensação de ter caído
num saco de gatos. Punhais e sangues
frios. Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras
e, no fim, faz frio,
faz um frio medonho. É tarde,
tiram-se as luvas cheias de sangue,
tira-se a camisa cheia de sangue
,
diz-se qualquer coisa a esse rosto
que ainda vem ao espelho recolher-nos,
fechas os olhos e segues esse sono bruto
sem nada do outro lado.

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