Sensibilidade
Há um esforço de investigação da linguagem que se distingue por uma atitude de radical esperança, ganhando forças num ânimo obstinado que faz questão de dizer as coisas sujeitas à perturbação com que se olha – quando se olha sensibilizado por um certo assombro – e se rompe com a ordenação desgraçada que tira registo do mundo como um inventário de miudezas ritmadas num feixe de razões banais.
O poeta abre a boca sobre a realidade com a sofreguidão de um esfomeado. Não é apenas que se queira encher, o que há é uma ambição que roça a loucura e que quer pôr em acção um novo eixo para a revelação do que pode ser real. Do que precisa de ser, exactamente porque ao ver-se capturado pela lucidez furiosa do poema assumiu a dignidade do que é vivo, do que não se deixa resumir nem cai de lado para alguma relação de entendimentos sem talento nem fulgor, desanimada ou desinspirada, patética e que, em última instância, não vai além de uma redundante e ordinária fraude. Não é que a poesia deva pavonear-se como se se exprimisse ao nível dos oráculos, não é uma arrogância de quem julga que lida com a verdade mas antes a arte de cair em erro com a maior das elegâncias, com uma audácia e eloquência que reclame da nossa sensibilidade um desejo de entrar em diálogo com o mundo como criação. Não será vir falar por um qualquer deus nem atalhar pela via de quem pretende interpretar ansiedades divinas. Cair como um homem, por inteiro, mais fundo que o anjo, cair no vício de si, na exuberância do pensamento que galga limites para pôr as mãos e a boca no fruto das mais inusitadas intervenções do génio. Dar corda à realidade, ouvir-lhe a música em todas as escalas.
A poesia começa por deixar para trás e depois humilhar a linearidade lógica que se põe ineptamente diante do mundo, incapaz de raptos, de afrontas, de uma lucidez que zurza sobre ele exigindo-lhe que corrija a postura, ou tão-só de um deslumbramento que lhe dê toda a liberdade para as vaidades mais generosas. Concorrente da acção subtil do tempo, a poesia debate-se para criar condições para que se dê a explosão do instante. Degrada o tempo, empurra-o da sua centralidade como protagonista da trama, intriga de um modo mais frutuoso. O tempo é o guião que os deuses deixam aos homens para os verem embrulhar-se na vida entre doses justas de deleite e doses absurdas de angústia. Mas se o poeta não manda calar o tempo, o que faz é falar por cima. Às vezes prefere murmurar-lhe ao ouvido, põe-lhe uma tal confusão nas ideias que, mesmo se não desgoverna a sua frieza marchante, reduz-lhe as contas ao discurso repetitivo em que se derrama um doido encerrado num espaço exíguo a ver os dias passar.
A poesia introduz uma expectativa vibrante no silêncio. Ritmo encantatório que faz a realidade revistar-se constantemente para entregar todos os valores. A poesia não se impõe, mas absorve e deslimita as coisas. Retira-as ao conforto de estarem quietas na relação de si consigo mesmas, ensina-as a dançar nos seus contrastes e torna-se a anfitriã do grande baile da inteligência.
Identidade
Uma arte actuante, a poesia é o grau máximo de esplendor que a linguagem conhece ao ser solta como a matilha caçadora de um entendimento único da realidade. A visão do poeta é sempre radicalmente pessoal, o que não impede que seja ao mesmo tempo tão convincente que se monta nos ventos com o ânimo de um contágio. Mas a poesia é sempre um discurso da identidade. Uma interioridade que se põe cá fora e conquista posições sob o impulso de um motor transfigurador, que pesa, mede, agita, intimida ou encoraja as dimensões de tudo o que se oferece à sua percepção, tudo aquilo que sendo real anseia por ganhar um qualquer papel nos enérgicos devaneios da sua ficção suprema.
As nossas ficções, como um último e glorioso fôlego do génio criativo que nos é legado, continuam mesmo na sua agonia a agarrar-se aos valores que elegemos como essenciais para a definição do projecto humano.
O poeta é o autor de si mesmo. O homem que não desdenhando dos deuses nem se arrogando de que seria capaz de fazer melhor, não se contenta com a distância e o escalpelo de que se serve o crítico. Pela poesia participa-se, escolhe-se reforçar o sentido genesíaco da realidade, deitando as mãos nos pontos onde esta, ainda incerta ou tosca, se deixa moldar. O poeta leva as mãos ao corpo do mundo para perceber onde este ainda sente cócegas e pode ser descomposto na sua solene postura, a qual muitas vezes com um só bafejo se rende e se deixa vergar.
A vida não é sempre mais do que uma sensação que se reforça dia após dia em nós. Nas ideias que fazemos está muitas vezes mais do mundo que sentimos como nosso do que a realidade que enfim nos cerca. Ora, o dia a dia amante do poeta faz-se de assumir poder sobre estas ideias e sobre a sensação que sabe mais de nós.
Não existe em nós mundo para além daquele que se conquista ou que nos subjuga. O esforço do poeta é não se deixar subjugar, sair de debaixo da ordem prática e moral mais mendicante, alcançar razões só suas, uma existência que, à medida que se torna única, dá ordens ao mundo, diz-lhe aquilo de que vai precisar para lhe oferecer um sentido mais profundo, e fica disponível para mudar de ideias, ir mais longe, dizer de novo tudo, mais alto ou melhor.
Como motor de transfiguração, o poema dita o seu próprio manual de instruções, integra as funções que quer e atarefa-se do que bem entende. Um artefacto que revoga qualquer utilidade que à partida dele se esperasse retirar, é o monumento da sua própria insurreição, uma manifestação da força que se opõe a qualquer regime lúdico, à ordem contentada do conjunto de dispositivos residualmente culturais que geram distracções e levam ao alheamento.
quarta-feira, setembro 25, 2013
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