quarta-feira, setembro 25, 2013


Sensibilidade

Há um esforço de investigação da linguagem que se distingue por uma atitude de radical esperança, ganhando forças num ânimo obstinado que faz questão de dizer as coisas sujeitas à perturbação com que se olha – quando se olha sensibilizado por um certo assombro – e se rompe com a ordenação desgraçada que tira registo do mundo como um inventário de miudezas ritmadas num feixe de razões banais.
O poeta abre a boca sobre a realidade com a sofreguidão de um esfomeado. Não é apenas que se queira encher, o que há é uma ambição que roça a loucura e que quer pôr em acção um novo eixo para a revelação do que pode ser real. Do que precisa de ser, exactamente porque ao ver-se capturado pela lucidez furiosa do poema assumiu a dignidade do que é vivo, do que não se deixa resumir nem cai de lado para alguma relação de entendimentos sem talento nem fulgor, desanimada ou desinspirada, patética e que, em última instância, não vai além de uma redundante e ordinária fraude. Não é que a poesia deva pavonear-se como se se exprimisse ao nível dos oráculos, não é uma arrogância de quem julga que lida com a verdade mas antes a arte de cair em erro com a maior das elegâncias, com uma audácia e eloquência que reclame da nossa sensibilidade um desejo de entrar em diálogo com o mundo como criação. Não será vir falar por um qualquer deus nem atalhar pela via de quem pretende interpretar ansiedades divinas. Cair como um homem, por inteiro, mais fundo que o anjo, cair no vício de si, na exuberância do pensamento que galga limites para pôr as mãos e a boca no fruto das mais inusitadas intervenções do génio. Dar corda à realidade, ouvir-lhe a música em todas as escalas.
A poesia começa por deixar para trás e depois humilhar a linearidade lógica que se põe ineptamente diante do mundo, incapaz de raptos, de afrontas, de uma lucidez que zurza sobre ele exigindo-lhe que corrija a postura, ou tão-só de um deslumbramento que lhe dê toda a liberdade para as vaidades mais generosas. Concorrente da acção subtil do tempo, a poesia debate-se para criar condições para que se dê a explosão do instante. Degrada o tempo, empurra-o da sua centralidade como protagonista da trama, intriga de um modo mais frutuoso. O tempo é o guião que os deuses deixam aos homens para os verem embrulhar-se na vida entre doses justas de deleite e doses absurdas de angústia. Mas se o poeta não manda calar o tempo, o que faz é falar por cima. Às vezes prefere murmurar-lhe ao ouvido, põe-lhe uma tal confusão nas ideias que, mesmo se não desgoverna a sua frieza marchante, reduz-lhe as contas ao discurso repetitivo em que se derrama um doido encerrado num espaço exíguo a ver os dias passar.
A poesia introduz uma expectativa vibrante no silêncio. Ritmo encantatório que faz a realidade revistar-se constantemente para entregar todos os valores. A poesia não se impõe, mas absorve e deslimita as coisas. Retira-as ao conforto de estarem quietas na relação de si consigo mesmas, ensina-as a dançar nos seus contrastes e torna-se a anfitriã do grande baile da inteligência.


Identidade

Uma arte actuante, a poesia é o grau máximo de esplendor que a linguagem conhece ao ser solta como a matilha caçadora de um entendimento único da realidade. A visão do poeta é sempre radicalmente pessoal, o que não impede que seja ao mesmo tempo tão convincente que se monta nos ventos com o ânimo de um contágio. Mas a poesia é sempre um discurso da identidade. Uma interioridade que se põe cá fora e conquista posições sob o impulso de um motor transfigurador, que pesa, mede, agita, intimida ou encoraja as dimensões de tudo o que se oferece à sua percepção, tudo aquilo que sendo real anseia por ganhar um qualquer papel nos enérgicos devaneios da sua ficção suprema.
As nossas ficções, como um último e glorioso fôlego do génio criativo que nos é legado, continuam mesmo na sua agonia a agarrar-se aos valores que elegemos como essenciais para a definição do projecto humano.
O poeta é o autor de si mesmo. O homem que não desdenhando dos deuses nem se arrogando de que seria capaz de fazer melhor, não se contenta com a distância e o escalpelo de que se serve o crítico. Pela poesia participa-se, escolhe-se reforçar o sentido genesíaco da realidade, deitando as mãos nos pontos onde esta, ainda incerta ou tosca, se deixa moldar. O poeta leva as mãos ao corpo do mundo para perceber onde este ainda sente cócegas e pode ser descomposto na sua solene postura, a qual muitas vezes com um só bafejo se rende e se deixa vergar.
A vida não é sempre mais do que uma sensação que se reforça dia após dia em nós. Nas ideias que fazemos está muitas vezes mais do mundo que sentimos como nosso do que a realidade que enfim nos cerca. Ora, o dia a dia amante do poeta faz-se de assumir poder sobre estas ideias e sobre a sensação que sabe mais de nós.
Não existe em nós mundo para além daquele que se conquista ou que nos subjuga. O esforço do poeta é não se deixar subjugar, sair de debaixo da ordem prática e moral mais mendicante, alcançar razões só suas, uma existência que, à medida que se torna única, dá ordens ao mundo, diz-lhe aquilo de que vai precisar para lhe oferecer um sentido mais profundo, e fica disponível para mudar de ideias, ir mais longe, dizer de novo tudo, mais alto ou melhor.
Como motor de transfiguração, o poema dita o seu próprio manual de instruções, integra as funções que quer e atarefa-se do que bem entende. Um artefacto que revoga qualquer utilidade que à partida dele se esperasse retirar, é o monumento da sua própria insurreição, uma manifestação da força que se opõe a qualquer regime lúdico, à ordem contentada do conjunto de dispositivos residualmente culturais que geram distracções e levam ao alheamento.

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