segunda-feira, setembro 30, 2013


A COMPETIÇÃO DIACRÓNICA

 

“Competição diacrónica” é um conceito usado por Richard Heinberg, um jornalista americano que muito tem escrito e falado sobre a encosta descendente em que nos encontramos na corrida ao consumo de combustíveis fósseis, em vias do esgotamento. Mas esta ideia de uma competição diacrónica, a verificação de que passámos a competir com os nossos descendentes, ocupando não o espaço que sobra (porque esse já não existe) mas o tempo que resta, o tempo futuro, é muito pertinente para percebermos o que se passa no campo da economia e dos mercados financeiros. Um grave erro de análise – garantia de que tudo seguirá o seu curso catastrófico – consiste em pensar que há uma lógica económica autónoma que rege tudo. Ora, essa lógica económica não existiria se não dependesse de uma teoria da história que se baseia na experiência da aceleração moderna do tempo. Deve-se a Reinhart Koselleck, o autor alemão de uma monumental história dos conceitos, ter apreendido a aceleração como categoria específica do tempo histórico. A competição diacrónica começou com a ideia de progresso e reforçou-se com o imperativo do crescimento. Por causa da aceleração, diz Koselleck, “o nosso globo transformou-se numa nave espacial fechada”, lançada no infinito. Como muito bem percebeu Benjamin, há uma ideia da história que explica o curso do mundo, e não é possível interrompê-lo se não construirmos uma nova. É ingénuo pensar que o modelo económico é causa; na verdade é consequência. A categoria da aceleração permite perceber como é que a nossa época produziu em tão pouco tempo tanto passado, ao ponto de já só produzir passado porque deixa imediatamente para trás ciclos evolutivos que dantes levavam séculos a sedimentar. É a época das epoquizações: das décadas que ganham autonomia e passam a escandir o tempo histórico, como dantes acontecia com os séculos e, antes, com os milénios; do ano que entra em liquidação por altura dos balanços; das rentrées que se tornam um passado longínquo logo a seguir ao dia de Natal. Não se trata do encurtamento apocalíptico do tempo, de que falam os textos apocalípticos da tradição judaico-cristã, porque esse representava o trânsito para a salvação eterna, era um modo de chegar mais depressa ao dia do Juízo Final. A competição diacrónica consiste em roubar tempo aos que hão-de vir porque não nos chega aquele que nos estava reservado. Esta é a consequência lógica do princípio que rege toda a nossa economia e sociedade, popularizado por Benjamin Franklin: “Time is money”. Um antigo agricultor que plantava cenouras, da espécie antiga, que levam alguns meses a crescer, não sentia que estava a perder tempo e não decidia passar à monocultura dos nabos, que crescem em poucas semanas. Ele desconhecia o princípio de que “time is money”. Para ele, cenouras e nabos tinham um ciclo temporal idêntico: nascem, desenvolvem-se e, se não são colhidos, tornam-se duros e lenhosos, primeiro, e depois apodrecem. Ora, para a agricultura industrializada o princípio fundamental é o de que “time is money”, e se ainda comemos cenouras é porque a engenharia genética tornou possível chegar a novas espécies que crescem em metade do tempo (e ficam em débito relativamente ao sabor, na natureza também não há almoços grátis). A competição diacrónica originada pela aceleração explica a questão da dívida. Os países endividam-se porque nós somos todos seres vivos em débito. Se só recentemente é que nos começaram a fazer ver isso, não é porque a dívida possa ser saldada – ela só pode ser reproduzida. É porque o débito do ser vivo é a modalidade da sua sujeição.  

- António Guerreiro
in Ípsilon (20.09.2013) 

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