quinta-feira, agosto 01, 2013


E o defunto poderá, como se fosse um
deus, fazer tudo quanto o seu coração deseja,
Livro dos Mortos, cap. CI (1480 a.C.)

Sede da segunda vida. Oxalá encontre,
oculto, um caminho de saída.
Alguém restitua o coração
e em paz permaneça, real, incessante.
Possa um deus antigo, não destruído pelo fogo,
conferir a forma de um lótus
plenamente aberto e ver-me,
sob chuva impiedosa, em esplendor de pureza.
Não, nunca confundir-se com os deuses,
combatem entre si e perecem
como ninhos serpenteantes de vespas.
Nem com o falcão, que nasce
e se oculta por cima das montanhas.
Oxalá no ciclo das metamorfoses
seja, depois de lótus, uma andorinha
que leve a treva cativa nas suas asas
e entre em minha casa, na estrebaria
de Cristo e busque o alimento
entre a floresta, o céu e as searas dos pósteros.
Que não tenha eu nome, próximo mistério.

Sede de outra vida. Oxalá a morte
me sepulte no voo interminável da infância,
seja eu filho de mim mesmo,
um recém-nascido órfão e ressuscite meus Pais.
E cessem de dirigir-me súplicas,
lavem neste manancial de lágrimas
o ombro e se ajustem à fúria cortante dos ventos.
Possa a memória não perder
a sua purificante laringe, volte, sílaba
a sílaba, aos primeiros instantes,
eu imobilize os seus precipícios,
reviva, ouça, me olhe sem espanto,
sem procurar alguém que deva ou não absolver,
a juventude seja o único amuleto
e todo o mal saia, pela raiz,
do sarcófago celeste.
Que não seja um ser rodeado de muralhas,
um solitário destruído na sua solidão,
o meu túmulo floresça
e jamais emane iracundo odor.
Oxalá eu possa tranquilizar os meus vermes.

- António Osório
(retirado daqui)

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