sábado, agosto 24, 2013

A ESCOLA MERITOCRÁTICA


Há quase um século e meio, Nietzsche, numa série de conferência sobre “o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, denunciava esta situação esquizofrénica: “As nossas escolas são dominadas por duas correntes aparentemente contrárias, mas igualmente ruinosas na sua acção […]: por um lado, a força tendente a ampliar e difundir o mais possível a cultura; por outro, o impulso que tende a restringir e enfraquecer essa mesma cultura”. Tal esquizofrenia surge hoje ampliada pela entrada em cena de um modelo que se chama meritocracia, cujo método se baseia em medições objectivas através do sistema do test, do exame. Do ponto de vista da ideologia meritocrática, o mérito é, por definição, mensurável e essa mensurabilidade tem de ser universal. A ideia do cheque-ensino, independentemente de também poder ser analisado noutras dimensões, insere-se em primeiro lugar na retórica e na ideologia meritocráticas. Mas é preciso distinguir o mérito da meritocracia. Certamente que ninguém deixará de apreciar os méritos dos estudantes e dos professores, identificando-os com a inteligência, a cultura, o espírito crítico, o empenhamento no trabalho, enfim, as diversas capacidades. Mas a meritocracia é outra coisa completamente diferente, como sugere a composição da palavra, que estabelece uma relação entre mérito e poder: é um projecto de engenharia social em que a identificação do mérito de uns é a outra face da selecção negativa de muitos outros. Esta crítica da ideologia meritocrática está longe de ser exclusiva da Esquerda e não recai necessariamente no igualitarismo. Tal como não é exclusivo de uma crítica de Esquerda pôr em causa o mito de uma relação indiscutível entre o mérito e o mercado, como se o mercado selecionasse naturalmente e exclusivamente o mérito. A pergunta que deve ser colocada à meritocracia é a seguinte: a escola pode ser considerada como uma organização com um objectivo preciso, segundo o modelo da competição desportiva, ou a sua relação com a vida é mais complexa e multiforme? A escola tecno-nihilista da meritocracia e da medição do output académico tende a transformar a instrução, a cultura e o saber em adestramento, em construção de competências mensuráveis. A lógica da generalização dos testes standard é a lógica de uma tecnicização do ensino e da aprendizagem. É a fé na meritocracia. Medir objectivamente o mérito dos estudantes implica não deixar espaço nem ao juízo subjectivo dos professores nem ao que não se traduz em parâmetros numéricos. A meritocracia, exigindo um sistema de avaliação eficiente e objectivo, não pode conviver com a ideia de que nem todas as capacidades são computáveis. E é aqui que começa o problema com o ensino das disciplinas humanísticas, como demonstram de maneira grotesca os exames de Literatura e Filosofia, em que o imperativo da objectividade na avaliação (ao serviço da qual se criam complexas grelhas de correcção) está sempre a entrar em litígio com a especificidade e o campo de saber dessas disciplinas, colocando à margem o que não se consegue sujeitar a uma medição objectiva. Eficiência, adestramento, competências: a escola tecno-nihilista da ideologia meritocrática não está em crise por estar demasiado desligada das finalidades perseguidas pelo Estado e pelo mercado, mas, pelo contrário, por ser incapaz de se desligar e exceder os objectivos de produção e adestramento dos cidadãos impostos pelo poder político à escola e à universidade.


- António Guerreiro
in Ípsilon (16.08.2013)

Sem comentários: