sexta-feira, julho 19, 2013

Requiem pelos partidos


Uma máxima atribuída a Napoleão diz o seguinte: “Em França, a salvação de todos reside na aniquilação dos partidos”. Dois séculos depois, estas palavras, que formulam uma equação em que os partidos e a salvação colectiva são termos antagónicos, ecoam algo que se tornou, para nós, muito familiar. Por outras razões, o senso comum passou recentemente a ver os partidos como um demónio do qual é preciso fugir. Mas, durante o tempo que nos separa de Napoleão, o partido político, enquanto forma de organizar as massas politizadas a que a categoria política do povo deu figura representável, foi um grande protagonista da História. E o seu destino confundiu-se com o próprio destino do Estado e da política moderna: a forma partido sancionou e, em certa medida, legitimou a força da política e fez do século XX o século da política, aquele em que um sujeito activo impôs a supremacia da coisa pública. Por isso, quando, a partir do início dos anos 80, a cena foi ocupada por uma máquina de suprimir a política e esta entrou num coma profundo, de onde nunca mais saiu, o partido entrou em crise. Crise da política significa, como sabemos, o fim da sua autonomia, passagem a uma posição subalterna relativamente à economia (o que faz dos governos comités de negócios), despolitização do agir público, ideia hegemónica da opinião pública (isto é, uma ideia passivamente neutra da política), incorporação da ideologia da anti-política, perda das duas grandes subjectividades históricas de onde ela tinha retirado toda a sua força: as massas politizadas (que deram lugar à gente apolítica) e o Estado, que já não é concentração de poder e nem sequer já detém o monopólio da violência. De certo modo, o partido político seguiu por outros meios – e paralelamente – a história moderna do Estado, da hegemonia ao declínio. Assim, tão improvável é o regresso do Estado na sua forma tradicional quanto a recuperação da forma do partido, que entrou em perda de razão social. Este é o contexto que explica todos os apelos ao consenso, que um filósofo francês, Jacques Rancière, definiu deste modo: “Consenso parece exaltar as virtudes da discussão e da concertação que permitem o acordo das partes implicadas. Mas, vista mais de perto, a palavra quer dizer exactamente o contrário: quer dizer que os dados e as soluções dos problemas são tais que toda a gente deve verificar que não há nada a discutir”. Os partidos limitam-se hoje a disputar o mercado eleitoral no sistema político, e é por isso que as democracias se tornaram regimes oligárquicos alargados. A política, naquilo que dela ainda existe, já não são os partidos que a fazem: são os comentadores, os magistrados, os jornalistas, etc. Veja-se, aliás, como os homens de partido se tornam comentadores para saírem do espaço despolitizado e entrarem no espaço – exíguo, mas o único que resta - da política. Algum governo, nos últimos anos, se formou com base num projecto de sociedade? Os governos são cada vez mais técnicos e cada vez menos políticos. Maiorias políticas parlamentares elegem e apoiam conselhos de administração da empresa-país, que por sua vez nomeiam burocratas (sempre com uma grande aura de “competência”, nem sempre confirmada) para gerir a coisa pública. Eliminada a política, os partidos limitam-se à função de cumprir satisfações narcísicas. Daí que se tenha tornado tão sensaborona e entediante a ladainha democrática, como se os deuses demos e kratos ainda estivessem entre nós e não tivessem fugido para outras paragens longínquas.


- António Guerreiro
in Ípsilon (19.07.2013)

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