terça-feira, julho 09, 2013

 
Francisco José Viegas nunca foi secretário de Estado


Durante muitos anos, a cultura foi para Francisco José Viegas uma religião civil: ecuménica, extensiva, capaz das mais maleáveis operações de síntese. Até que um dia este soldado da paz se deixou recrutar e foi servir, como general, no campo de batalha. Não fez uma campanha gloriosa, nem tal se esperava, mas não seria correcto dizer que saiu com o rabo entre as pernas: mal recuperou os direitos civis, mandou a hierarquia que tinha servido – ou parte dela – “tomar no cu”. Começava aí uma saída dolorosa e declinada no gerúndio: tratava-se de ir saindo até que o ex- ( do ex-secretário de Estado da Cultura) fosse completamente sacudido das suas vestes. No processo de saída, ainda em curso, ele terá certamente reparado nesta injustiça: muitos outros, mobilizados para as mais altas funções governamentais, basta-lhes sair para reconquistar integralmente o exterior; mas ele, tendo consagrado a sua vida ao sacerdócio da cultura, à missão de reunir crentes segundo o princípio de uma universal compatibilidade, viu-se confrontado com a necessidade de elaborar um “trabalho de saída” (no sentido em que Freud fala do “trabalho de luto”), para recuperar o que dispersou ou perdeu durante a campanha. Era preciso reparar o que, no trabalho de uma vida, tinha sido desviado por uma incursão transitória e por uma mobilização que nunca foi total. A sua consciência laica experimentou o que era o “irreparável” da consciência religiosa. E, como um  teólogo medieval, soube que nem Deus pode fazer com que aquilo que aconteceu deixe de ter acontecido. Perante o irreparável, lançou o grito com que iniciava o esforço de saída, maior do que o esforço da campanha: vão “tomar no cu”. Uma exegese culta e generosa diria que FJV, mal saiu do seu posto governamental, subiu ao seu blogue, como Nietzsche a Sils-Maria, e confiou ao país a sua revelação escatológica (nada, mas mesmo nada, sexual). A penosa tarefa de expulsão do ex- continuou recentemente na coluna “A Abrir” - assim se chama, mas poderia chamar-se “A Sair” – que assina no último número da revista Ler, de que é director. Desta vez, o ex-secretário de Estado da Cultura vem dizer que “o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa está cheio de normas ridículas que deveriam ser corrigidas ou simplesmente rasuradas” e que ele “não deveria ter entrado em vigor sem que estivesse encerrado o Vocabulário Ortográfico”. Nesta matéria – como na outra, escatológica – o ex- é muito mais claro e afirmativo do que o secretário de Estado e até podemos pensar que está a querer demiti-lo retroactivamente. Haverá uma hipótese salvífica para o seu passado recente? Um lance arriscado, intempestivo, leva-o à porta de saída, onde ele julga que não há porteiro nem vigilância: “Infelizmente, o Estado português não olhou a meios para poder declarar estar na linha da frente, até na questão da adoção [a revista “Ler” também adoptou o novo AO] de um acordo ortográfico. Não admira: é cada vez mais difícil encontrar, nestas esferas, alguém que escreva com sujeito, predicado, complemento directo e algum conhecimento do nosso dicionário culto”. É um duro atestado, embora tingido pelo eufemismo arguto – mas não inocente – de evocar o “Estado português” onde deveria ter nomeado os governos portugueses, de um dos quais o reclamante fez parte. Mas devemos compreender que a tarefa da saída – como aquela em que tem trabalhado FJV – tem de atravessar alguns escolhos e não é uma caminhada tão triunfal como o recrutamento e os preparativos para a entrada na campanha.

- António Guerreiro
in Ípsilon (5.07.2013)

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