segunda-feira, julho 08, 2013

ANJOS TARDIOS


1.

Ninguém sabe dos anjos, nem do vento,
nem do sangue que bate nos moinhos.
Há homens assim, vestidos com a doença,
arruinados pela sombra. Como pequenos
duendes em trânsito para a morte. É neles
que habitam as árvores e a felicidade cega.
Neles nascem dezasseis mulheres numa
zona púrpura. Mulheres elegíacas_____

Mulheres que pensam na música, por detrás
do sol. Que trazem nos ombros uma corrente
de água. Mulheres comandadas por um búfalo,
caindo sobre a memória, incendiando as casas.


2.

São anjos de metal, estendidos no outro lado
do mar, com a pele encostada a um navio.
Anjos inclinados para a madeira, presos a uma
corda, sabendo que o céu se abre para eles como
uma forca. Uma grande luz vem dos penhascos,
traz essas mulheres no seu dorso, esmagadas
pelo olhar. Uma sirene cruza o nevoeiro_____

É de novo a morte, a última tentação da carne,
o grande vestido deposto sobre um estrado.
Outro anjo nasce fulminando a beleza do dia.
Tem uma voz, um rosto, uma oficina. É um
cântico tardio, uma desordem, uma paixão
que se esvai triturada por uma súbita fraga.


3.

Quando adormecem e a tempestade se cruza
com as plantas, os anjos desfazem as asas
contra o lume como se fossem livros velhos.
Depois, aparecem mulheres cinzentas suspensas
por fios e o mundo estende-se pelos quartos,
sobre as rendas até à morte dos pássaros_____

Um homem apanha os restos de comida numa
fábrica. Vive colado a um biombo como um
espantalho. É da sua máscara que renascem
outros anjos, mais novos do que aqueles que
se escondem nas árvores. Nesse momento,
a cidade acorda e refaz os ruídos, o nevoeiro,
empurrando tudo para o meio de uma antiga
seara. As mulheres dão vida ao deserto,
deixando para trás as ruas.


4.

Chega então um anjo maior, um anjo cravado
num rochedo, adorado pelos peixes. Um homem
desce de uma ravina e cobre-o de sal, todos os
dias, com uma pá, como se a sua vida estivesse
enfeitiçada por esse mistério_____________

A seguir, limpa-lhe o corpo com algodão e separa
as algas, uma a uma, enrolando nelas pequenos
seres que habitam as pedras do mar. O anjo está
ali, virado para os outros anjos, com uma armadura,
como um guerreiro do fogo, um chamador.
Enquanto as mulheres se despem para atrair
a chuva, tentando desse modo que o barro
não se dilua com a água__________

Estão naquele lugar porque é nesses recantos
que os barcos apodrecem e os polvos se colam
aos ferros. E é também ali que os homens
escondem o choro após os naufrágios.


5.

ao pôr-do-sol os anjos entram num torpor,
num círculo desenhado pelas aves marinhas.
Desfazem-se do metal e a sua nudez agita
o oceano como um cachalote que desencadeia
uma tempestade e engole os navios. As mulheres
fogem para grandes buracos, para detrás das urzes.
Existem nessa obscuridade quatrocentos túmulos,
um espaço alimentado pelos anjos__________

É nessa humidade da noite que os homens ainda
vivos escolhem as amantes, guardados pelo musgo,
pelo vinho, por uma luz reflectida nos búzios
que adormecem junto a um espelho.

- Jaime Rocha
in Telhados de Vidro n.º 18
retirado daqui

Sem comentários: