domingo, junho 02, 2013




CASAMENTO E CULTURA GAY



Em tempos não muito recuados, a homossexualidade precisava de um álibi literário (onde adquiria geralmente o charme da transgressão) ou científico (quando era considerada uma patologia ou um distúrbio) para ser representada publicamente. A tolerância em relação ao que se passava na literatura emigrou, felizmente, de um modo geral, para a vida social. A imagem pública dos homossexuais como grandes consumidores e viajantes fez muito por isso: a plena cidadania adquire-se hoje muito especialmente pelo acto do consumo. A iconografia gay tinha então um aspecto Kitsch muito marcado e era reconhecível à distância. Hoje, o Kitsch correspondente à nova época aloja-se sobretudo numa forma de proselitismo que invadiu jornais e revistas: as reportagens sobre os casais homossexuais com filhos, todos a transbordar de felicidade e de normalidade, em conformidade total com o ideal de vida que até há pouco tinha servido para os excluir. Mais do que isso: hiperconformes, como aquele judeu assimilado de que fala Hannah Arendt, Mr. Cohn, judeu assimilado que foi sucessivamente alemão a 150%, vienense a 150% e francês também a 150% .
    Michel Foucault, falando da cultura gay como aquilo a que ele chamava um “modo de vida” (e que o levava a dizer. “Nós temos que aspirar a tornarmo-nos homossexuais e não a reconhecer que o somos”, ou, como ele também dizia, “a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo desejável”), tentou equacionar este dilema: ou reintroduzir a homossexualidade na normalidade geral das relações sociais, ou, pelo contrário, fazer com que ela escape na medida do possível ao tipo de relações que é proposto na nossa sociedade, criando um espaço vazio onde são possíveis novas possibilidades de relação.Tais proposições ganhavam sentido numa altura em que a sexualidade era integrada na luta política, mas é duvidoso que hoje ainda o tenham. A questão de Foucault era a de inventar, multiplicar, modular as relações que podem ser estabelecidas através da homossexualidade. Em suma: criar modos de existência, tipos de valores, formas de troca entre os indivíduos que não fossem correspondentes às formas culturais gerais. Para ele, a sexualidade era uma questão de modo de vida e reenviava para uma técnica de construção de um sujeito.
   Todas estas questões políticas estão hoje ausentes de qualquer debate e, provavelmente, só vinham perturbar aquilo que é justamente visto como conquista de igualdade e emancipação. Mas a um outro nível que não é o dos debates parlamentares e nem sequer o da discussão pública nos jornais, as coisas são muito mais complicadas e mal parece sairmos de um “mito” responsável por uma longa história de repressão entramos noutro que parece libertador, mas não deixa de ser uma mentira, com o seu correspondente estético no Kitsch das representações fotográficas da felicidade conjugal e da maternidade e paternidade sem mácula. É inevitável que assim seja e as vantagens são bem maiores do que os malefícios? Provavelmente, mas isso não nos deve impedir de verificar que, neste domínio, mal uma restrição é anulada, logo outra se levanta. De resto, ao falar de uma “cultura gay”, Foucault não se referia a uma cultura liberta de todos os constrangimentos, mas a uma cultura em que os indivíduos submetidos a um sistema (não um sistema intolerável, pois aí não há mobilidade possível) conseguem criar os meios para o modificar num sentido que não é o da estratégia do Mr. Cohn.

- António Guerreiro
in Ípsilon (31.05.2013)

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