sexta-feira, junho 14, 2013


HERBERTO HELDER, POETA DA AURA

 

Mal tinha saído, já Servidões (numa edição de cinco mil exemplares e com reedição interdita pelo autor, informou a editora) estava esgotado na maior parte das livrarias. Estranho fenómeno este, de precipitação e multiplicação de leitores e compradores de um livro de poesia – o único medium de massa em que o número de produtores ultrapassa o dos consumidores, como escreveu uma vez o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger. Um dos factores que explicam o que aconteceu é ao mesmo tempo perverso e irónico: Herberto Helder zela tanto pela autonomia da sua obra (e isto significa, sobretudo, fazer com que ela apareça, livre de tudo o que a parasite ou a desvie para um espaço que não é o seu), que acabou por criar as condições aptas a um investimento mercantil: o seu livro é capturado por especuladores, como se se tratasse de um produto financeiro ou de uma mercadoria rara. E para que seja considerada rara é preciso que se torne objecto de um desejo de posse e não de leitura, pois o acesso a esta está sempre garantido e não se pode manter como desejo, não pode ser objecto de especulação. A este triunfo do valor de troca (ou melhor, da perspectiva de que ele vai triunfar, como acontece nos valores cotados na bolsa) soma-se um outro factor que o potencializa: o papel que na sociedade de massa têm os “filisteus cultivados” (tal designação, em que a palavra “cultivados” não deve ser substituída por “cultos”, é de Hannah Arendt). Mas o fenómeno só é possível porque a mercadoria não é cega, tem as suas argúcias e as suas sondas. Não é que seja crítica: ela não julga e age, reage. E, neste caso, podemos dizer que se trata – mas não exclusivamente – de reacção à reauratização que a poesia de Herberto Helder realiza em si mesma. Ela suscita e ressuscita um valor aurático, que lhe advém de uma visão mágica, do apelo da máscara mítica e demoníaca (diríamos religiosa, se a palavra não se prestasse a equívocos) com que nela surge o que é da ordem da história e do temporal. O poeta moderno – e Baudelaire foi talvez o primeiro a manifestar de maneira muito lúcida esta condição – não tem público. A relação entre sociedade e poesia é problemática, e quando Max Weber falou do “desencanto do mundo” estava também a diagnosticar esta situação. Em termos de uma história de longa duração, a história da poesia é a história de uma regressão que foi explicada mais ou menos desta maneira a partir do Romantismo: a poesia tem um valor, uma função e uma influência que se perderam à medida que as crenças e o saber dão lugar a uma racionalidade instrumental e que o espaço da existência espiritual foi ocupado por outras linguagens. Mas, como dizia um romântico alemão quase desconhecido (Carl Gustav Jochmann), muito consciente dos retrocessos da poesia, “nem tudo o que passou está perdido; nem tudo o que se perdeu é substituído; nem tudo o que não foi substituído é insubstituível”. Ora, o enigma da poesia de Herberto Helder reside aqui: sem deixar de ser profundamente do nosso tempo, ela parece recuperar uma voz antiga e fazer com que o leitor sinta que a eternidade assedia o presente de todos os lados e há qualquer coisa que ela reactiva com uma força poderosa, diabólica: algo que não é da ordem do aqui e agora, que tem a dimensão das anacronias, mas que o curso da história, como quer que ele seja entendido, não consegue suprimir. É disto que falamos quando dizemos que a poesia de Herberto Helder tem um efeito de reauratização.

- António Guerreiro
in Ípsilon (14.06.2013)

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