domingo, maio 19, 2013


PENSAR PARA ALÉM DO TRABALHO
 


A expressão “pensamento único” é uma contradição nos termos porque tal unicidade significa uma ausência de pensamento. É evidente que toda a gente pensa, mas se toda a gente pensa a mesma coisa ou no interior de uma mesma lógica não há de facto exercício do pensamento. É evidente que há muita gente que continua a pensar, mas está arredada dos centros do poder político e da discussão na esfera pública alargada. A diferença entre Esquerda e Direita esbateu-se quando as democracias liberais se tornaram um modelo de aspiração universal que parecia conduzir ao tempo homogéneo do fim da História. Hoje, a diferença entre Esquerda e Direita foi reactivada e restabeleceu-se a clássica polarização. Mas a encenação dramática dessa oposição serve apenas para dissimular uma verdade a que se chega ultrapassando o jogo das aparências e explicável por um axioma de Carl Schmitt: a Esquerda assemelha-se ao inimigo, a Direita. O inimigo é mesmo a sua imagem. Nada ilustra melhor aquilo de que estamos a falar do que a fatal sintonia de ambos os campos relativamente a uma questão fundamental do nosso tempo: a do trabalho e do desemprego. Uns são acusados de destruir empregos e os outros reclamam que se reconstrua a sociedade do trabalho. Neste jogo dialéctico que tem o seu termo de superação numa miragem, alguém que não se deixe levar pelo pensamento mágico, ou demagógico, ou irracional consegue acreditar que podemos regressar novamente a uma sociedade do pleno emprego? Pensar a questão não é pensar contra ou a favor de políticas de emprego, de despedimentos ou de manutenção de postos de trabalho, porque assim nunca sairemos do lugar onde estamos. Tudo tem de começar por aquilo que a nossa cultura e a nossa sociedade parecem incapazes de pensar. É neste sentido que adquire especial importância um conceito como o de inoperosità, sobre o qual tem trabalhado o filósofo italiano Giorgio Agamben. Inoperosità deve ser traduzido à letra,  como inoperosidade (mesmo que soe um pouco estranho), já que Agamben designa com esse termo uma actividade: não se trata de inacção, mas da operação que consiste em tornar inoperantes as obras do homem. O modelo da inoperosidade é o da obra de arte. O que é um poema senão uma operação linguística que consiste em desactivar as funções comunicaticas e informacionais da língua para a abrir a um outro uso? Ora, mostra Agamben nas suas investigações sobre a genealogia teológica da máquina governamental e da economia, uma questão que os teólogos colocavam de maneira recorrente era esta: o que acontece aos anjos, que são os funcionários do governo divino do mundo, depois do Juízo Final, quando a história da salvação estiver acabada de uma vez por todas? Resposta dos teólogos: os anjos serão destituídos das suas funções, não terão literalmente mais nada para fazer. Desemprego e inoperosidade serão o estado normal no Paraíso. Mesmo Cristo, no Paraíso, não terá mais nada para fazer, é um desempregado. Tudo isto parece muito esotérico, pura teologia. Mas se todos os conceitos fundamentais da política ocidental são conceitos teológicos laicizados, como pretendia Schmitt, então o interesse da noção de inoperosidade é que ela é  ao mesmo tempo um modelo do agir e uma estratégia política. Através da sua investigação genealógica, Agamben  mostra que enquanto o paradigma da acção humana não for pensado de uma maneira completamente nova, Esquerda e Direita não passam de irmãos inimigos que colaboram secretamente um com o outro.

- António Guerreiro
in Ípsilon (17.05.2013)

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