domingo, maio 19, 2013


A FÁBRICA, de Vasco Gato
Leitura de Hugo Pinto Santos

        Antes de se cingir à estreita e limitadora acepção de canto de heroísmos, o termo «épico» (epos, se recuarmos ao seu étimo) significou «palavra», «verso», «discurso», ou, mesmo – o que será, porventura, especialmente, relevante –, «poema». Poderá situar-se num cruzamento entre os dois tipos de sentido daquele vocábulo o âmbito do livro de Vasco Gato, enquanto reinterpretação coeva de um género que teve os seus expoentes para, no decurso da história da poesia, decair numa quase inexistência.
        Não será pela sua dimensão que A Fábrica poderá inscrever-se numa senda de reinterpretação do género – já que o conjunto se compõe de pouco mais de vinte poemas, de extensão variável, que oscilam entre a dimensão breve e média. Tão-pouco o será pela grandiloquência, que aqui está totalmente ausente, suprida pelos usos demóticos e criticamente contemporâneos do idioma – «Cambaleando pelo alcatrão que choveu,/ o bêbedo soletra/ ao descaso os lábios confiscados pelo torpor.» (p.27) Note-se, a propósito, a sabotagem e a articulação criada, por elipse e metonímia, entre o sentido plano – o alcatrão sobre que choveu – e a expressão de chegada, na qual o próprio alcatrão «choveu».
        Se aqui se fala do épico, é antes pela variação que estes poemas potenciam entre o «eu», conotado com o lirismo – «Procuro neste sono distante/ a margem táctil/ do teu corpo» (p.24) –, e o «nós», canonicamente indexado ao épico – «O nosso retrato/ é um fresco/ de helicópteros despenhados» (p.11). No caso dos versos citados, por via da flexão pronominal, o eixo organizador da enunciação encaminha-se do núcleo individual para um colectivo descentrado, mas que logra pulverizar a individualidade. De notar, ainda, o rasgão enunciativo motivado pela irrupção da sequência «helicópteros despenhados» em consonância (dissonância, aliás) com os «frescos», assim danificados por esta aparição de uma violentadora contemporaneidade. Quanto à individualidade, ela assomará em determinadas composições, como lastro, ou enquanto memória de uma primeira pessoa em potência – «O som de tal rasura chega-me/ sobre o silêncio da estrada,/ impondo-o.» (p.22) Uma circunstância, esta, em que o modo engenhoso como o encavalgamento e o aspecto rítmico do verso são geridos entra em linha de conta com a selecção lexical e a estruturação discursiva, para estabelecer proveitosos nexos por meio de estímulos díspares, como o sonoro e o visual.
        Aquela miscigenação, a interpenetração entre as duas dominantes, épica e lírica – e que já fora estudada por Schiller, por exemplo, na sua correspondência com Goethe –, constitui como um instrumento para a modalização dos textos, contribuindo, de forma decisiva, para a definição da sua feitura e para o alcance da sua consecução. E se é provável que, no confronto entre as duas dimensões, a predominância épica sobreleve a lírica, na qual a realização por vezes poderá ficar aquém da sua congénere – «E era tarde. E havia luzes./ E via-se que não podia ser/ de outra forma.» (p.21) –, parece ser verdade que, no seu melhor, os versos deste livro são sinais fortes, e potentes reactores, face a um tempo que já não é o mítico, nem sequer o histórico, mas o presente. Um presente que tem algo de espectral, mas que, contudo, é lucidamente inquirido, criticamente auscultado – «Apenas o leito quotidiano. E retinas/ para sempre escancaradas/ na hipnose do merecido descanso.» (p.7) Assim, o tempo presente adquire uma compostura e uma dimensão alegóricas, através das quais o dúbio palco da contemporaneidade é estudado como se faria a um prisma por várias facetas dado a conhecer.
        Com um manejo assinalável da metáfora e do símile – «Os bairros/ amontoam-se como plaquetas.» (p.7) –, calibrados, neste registo, de forma a travar o destempero estilístico, A Fábrica constitui-se uma epopeia, de cortes precisos, dos segmentos do urbano que se podem recolher através de uma leitura marcadamente não naif dos nossos dias. Trata-se de uma particularidade estilística que, no caso desta recolha, amplamente excede essa dominância, já que a sabedoria composicional e a destreza técnica, por um lado, tornam este volume um passo decididamente em frente na obra do autor e, por outro, assinalam a sua relevância num panorama mais vasto.
        O conseguimento desta poesia resulta, então, sobretudo, da abrangência que o seu posicionamento possibilita, e de certo pendor orquestral, que adquirem os vários elementos, como os que se convocam para aferir a textura citadina que alguns poemas conseguem convocar – «habitamos o território da fábrica:/ mesmo de olhos fechados,/ é uma fábrica que abraçamos» (p.19) –, como a voz de certa lucidez temperada de amargura.

        [versão ampliada de um texto publicado no «Actual» do Expresso de 18 de Maio de 2013]

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