segunda-feira, maio 06, 2013

O combate pela luz


De tanto ver a luz acabámos perdendo
a recta proporção desse milagre,
que outorga à matéria o seu volume,
contorno fiel ao mundo que queremos
e limite aos pontos cardeais.

À força do hábito, fomos levados a crer
que é algo que merecemos, cada dia,
que o dia se levante em sua claridade
e que se ofereça límpido aos olhos,
para que o olhar lhe entregue uma ordem própria,
distinto dos demais, e o converta
na nossa inadvertida obra de arte.

Há uma ingratidão consubstancial
ao feito de estarmos vivos, um intrínseco
poder de desmemória, e impedem-nos
de brindar cada instante com a homenagem
que cada instante verdadeiramente merece,
pela sua absoluta magia de estar a ocorrer,
em vez de não ter ocurrido em absoluto.

Com cada amanhecer dubitativo,
com cada tumultuoso amanhecer,
a luz arrasa o reino da noite
e empreende o seu combate. No confuso
magma da obscuridade, com cada aurora
triunfa a exactidão de tudo quanto existe
sobre a vocação de incerteza
que tenta com o seu vazio o real.

A cada madrugada renova-se
uma conjura de origem, essa fórmula
que impôs o movimento ao primeiro dia.
Somos testemunhas, na alba pura,
do trono em que a luz ergue o seu reino
e o concede intacto a qualquer súbdito.

        Convém contemplar a luz com mais paciência,
brindar a ela uma atenção deslumbrada,
a submissa homenagem com que um bárbaro
descobre reverentemente na sua aventura
a terra que jamais alguém viu.


- Carlos Marzal
in El corazón perplejo, Tusquets

1 comentário:

Albino M. disse...

Brindar a ela - última estrofe. Dar-lhe?