quinta-feira, maio 30, 2013

Noite


Os balcões passam pelos esgotos,
a chuva regressa à lua;
na avenida uma janela
revela uma mulher nua.

Nos odres dos lençóis enfunados
onde a noite respira,
o poeta sente os cabelos
crescer e multiplicarem-se.

A face obtusa dos tectos
contempla os corpos ao fundo
entre o céu e o pavimento
a vida é um alimento profundo.

Aquilo, poeta, que te trabalha
nada tem a ver com a lua;
é fresca a chuva,
o ventre funciona.

Vê como os corpos ascendem
em todos os balcões da terra;
a vida é vazia,
está longe a cabeça.

Algures um poeta pensa.
Não precisamos da lua,
é grande a cabeça,
a terra é plena.

Em cada quarto
o mundo treme,
da vida nasce qualquer coisa
que ascende aos tectos.

Um baralho flutua no ar
em torno dos copos;
fumo dos vinhos, fumos dos versos,
e dos cachimbos da tarde.

No ângulo oblíquo dos tectos
de todos os quartos que tremem
acumulam-se os fumos marinhos
dos sonhos mal concebidos.

Porque em causa estão a vida
e o ventre da ideia;
as garrafas golpeiam os crânios
da aérea assembleia.

O Verbo brota do sono
como uma flor, ou como um copo
cheio de fumos e de formas.

Chocam-se o copo e o ventre;
é clara a vida
nos crânios vítreos.

O ardente areópago dos poetas
reúne-se à volta do pano verde,
gira o vazio.

A vida atravessa o pensamento
do poeta de cabelos espessos.

Na rua uma janela apenas;
estalam as cartas,
a mulher sexual mostra o ventre à janela,
e acerca dele alguém delibera.

- Antonin Artaud
(tradução de Herberto Helder)
in Doze nós numa corda, Assírio & Alvim

Sem comentários: