sábado, maio 04, 2013


Eu amava o velho pai como quem ama uma coisa inventada, sem palavras nem carinhos. Via-o enorme, as pernas sempre a fugirem de mim, o corpo magro ligeiramente curvado e lá em cima as fossas do seu nariz. E era esta e não outra a minha invenção de pai. Via-o e era o mesmo que sentir-me duas vezes, como sombra na parede ou imagem no espelho. Porque ele tinha um ar severo e grave, raramente me falava, nunca me beijava, só uma vez me atirou com a mona às pernas. Como um pai que não há. Trabalhava à noite na estação de Setúbal e dormia de dia na nossa casa dos Quatro Caminhos, havia entre nós horários diferentes. Ele via a noite e a lua, eu o dia e o sol, éramos ambos duas paralelas, uma maior outra mais pequena. Encontrávamo-nos porém ao jantar mas o nosso infindável silêncio continuava a ser o nosso silêncio, embora a mãe dos dentes brancos falasse e risse entre nós.

Começo de “Relógio de Cuco”, de Virgílio Martinho:

Sem comentários: