sexta-feira, maio 03, 2013


A CULTURA DO LAZER
 

Quando hoje deploramos a transformação das revistas e suplementos culturais e literários em magazines que quase só promovem o entretenimento, devemos pensar que tal está ligado à própria evolução histórica da burguesia consumidora de cultura. A burguesia, que em pleno século XX se tornou remunerada e, mais recentemente, assalariada, já não dispõe de tempo. Podemos hoje facilmente identificar uma burguesia que aufere um sobre-salário (isto é, um salário superior, arbitrado por factores que são políticos e não apenas de mercado), mas já não existe a burguesia do sobre-tempo (cuja parte fundamental da sua remuneração era o tempo de que dispunha). Ora, o sobre-tempo, o tempo a mais, do burguês permitia aquilo a que os latinos chamavam o otium (também privilégio de certas classes que podiam não ser muito bem remuneradas, mas beneficiavam de um enorme grau de autonomia: os professores, por exemplo), enquanto a burguesia actual, mesmo a mais alta, já não dispõe de tempo e, por isso, já não conhece o ócio (no sentido do otium latino), mas apenas o lazer. A distinção entre ócio e lazer é óbvia e fundamental: o ócio é o tempo da liberdade e da criação; o lazer é o tempo que resta depois do tempo de trabalho, ou seja, aquilo a que se chama geralmente “tempo livre”. Hoje, o director de uma empresa não se pode entregar ao ócio, só tem direito ao lazer, que é um tempo arrancado à necessidade através de um combate, e que acabou por ser colonizado pela lógica da mercadoria. Daí a força com que floresceu o negotium do lazer, que já nada tem de gratuito. Dantes, a alta burguesia ia ao Club Med para se bronzear, para se divertir na água ou para ter sexo facilmente. Agora, o Club Med já tem de arranjar, para a atrair, umas “razões culturais”, para que ninguém se sinta cair no pecado da pura “perda de tempo”.  Karl Abraham, a que Freud se referiu uma vez como o seu “melhor aluno”, foi o primeiro a definir uma neurose que todos nós hoje conhecemos muito bem e a que ele chamou “a neurose de domingo “. Trata-se do momento em que as duas categorias, o lazer e o otium, tendem para a indistinção, criando um tempo de estranheza. A felicidade do domingo nunca passou de uma utopia, ou então mal tinha sido conquistada e já estava perdida. O sobre-salário de uma grande parte desta burguesia assalariada permite-lhe o gozo programado do lazer. E isso está previsto na lógica interna da sociedade capitalista. E é aí que entram em acção revistas e suplementos culturais como guias do lazer. E o lugar ocupado pelos críticos e intelectuais é substituído por quem faz roteiros e serve de conselheiro, segundo uma lógica que se traduz, de maneira aberta ou velada, por “o que você deve ler”, “o que você deve ver”, “o que você deve ouvir”.  A distinção entre ócio e lazer pode ser estabelecida segundo este critério, usado pelo linguista e filósofo francês Jean-Claude Milner: há um lazer-mercadoria, mas não há um ócio-mercadoria. Ora, acrescenta ele, “em todas as sociedades em que o otium tem algum lugar, seja ele público ou clandestino, é o tempo de dois gestos maiores: as liberdades e a cultura”. A partir do momento em que, na sociedade moderna, as obras da cultura foram integradas no tempo do lazer, elas entraram na lógica da mercadoria. A indústria do lazer tudo converte em valor, isto é, em trabalho. E assim chegámos à forma aparentemente paradoxal do trabalho do lazer.

 

- António Guerreiro
in Ípsilon (26.04.2013)

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