sábado, maio 11, 2013




RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO MASOQUISTA

A última vez que em Portugal ouvimos um artista manifestar publicamente o seu desprezo pelo público e afirmar que se subtraía ao seu poder de maneira soberana – e ostensiva – foi quando, na estreia de Branca de Neve, João César Monteiro disse a uma jornalista que ousou evocar tal entidade: “Eu quero que o público se foda”. Esta frase, quebrando com altivez despudorada todas as regras da “bienséance”, ecoava um grito vindo de outra época, dos primeiros modernistas, que a entoaram em coro e com violência. Podíamos referir muitos outros – artistas, escritores – que continuam a excluir o público dos seus cálculos, mas João César Monteiro fê-lo de maneira tão intempestiva e explícita que atraíu a fama de membro escandaloso de uma família respeitável, que uns vêem como um artista-filósofo e outros como uma figura um pouco simiesca.
As estatísticas da arte (de que os tops dos livros são um indicador, exibido por todo o lado) têm hoje um poder enorme e transformaram os artistas em masoquistas. Boris Groys, ensaísta, filósofo, teórico dos media e grande especialista das vanguardas russas (Professor em Karlsruhe, onde forma com Sloterdijk e Peter Weibel um brilhante trio), proferiu uma conferência em 2009, entretanto publicada, que se intitulava precisamente Retrato do artista enquanto masoquista. A tese central de Boris Groys é a de que o contrato que os autores estabelecem com a cultura da nossa época é um contrato que se assemelha a uma relação masoquista: um está obrigado a servir o outro, que reserva para si o direito de o maltratar, assim que se sinta mal servido. Obter o favor do público, satisfazer os caprichos do consumidor – eis a base, muito clara, desta relação masoquista. Nada é durável, na arte e na literatura, para além do tempo instantâneo da simpatia do público. O autor, diz Groys, tem uma relação com a liberdade, mas com a liberdade do outro, de que ele é escravo: “O autor enquanto autor já não é livre, só o outro é livre, só o seu leitor vive sob a condição do amor livre (…). Hoje, só o consumidor pode ser considerado como um filósofo em busca de evidência e de amor. O autor vive para além da evidência e para além do amor”. Isto é, ele é a presa, o objecto – masoquista – de uma experiência da evidência.
Boris Groys cita, na circunstância, um grande sociólogo alemão, Arnold Gehlen, que escreveu sobre o facto de que a arte moderna, ou de vanguarda, necessita de ser “comentada”, na medida em que a obra de arte e o seu comentário formam uma unidade inseparável (poderíamos dizer o mesmo, hoje, do comentário político, e verificar aí uma das razões da sua proliferação: ele forma um todo com a actividade política e governamental e não são separáveis). O gosto do público – diz Groys – constitui-se, por sua vez, através da substituição do comentário, isto é, das palavras, pelos números. A sensibilidade pop tem necessidade de números e precisa de ser reactualizada permanentemente. Assim, aquilo que ergue os autores ao pedestal é exactamente o mesmo que de lá os retira sem dó nem piedade. Para o público, o cânone histórico não tem qualquer valor, já que ele vive aqui e agora, gosta ou não gosta, consome ou não consome. E deixa de ter qualquer relevância a diferença entre público qualificado e público não qualificado, cultivado ou não cultivado. Essa diferença era pertinente quando estava em causa uma relação duradoura, um casamento. Mas não vale de nada quando se trata de uma relação fugaz e masoquista.  

- António Guerreiro
in Ípsilon (10.05.2013)

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