segunda-feira, abril 29, 2013



Há um cofre aberto que alguém se esqueceu de fechar, deixado ao desabrigo de uma casa sem telhas, apoiado sob duas traves de madeira; uma cadeira deitada, espreitando através da janela sem vidro os fins de tarde em que gente como nós vem indagar aos mortos sobre o destino dos vivos; prateleiras de cozinha amontoadas no interior dos armários escavados no granito; barrigas desertas que pedem a quem por elas passa: a fome da fome, pedindo vida à gente, e a gente sem nada nos bolsos para além de cigarros e três ou quatro nomes de antepassados mortos há mais de duzentos anos.

Junto aos olhos, uma delas traz ainda a gaiola e o complexo mundo de um pássaro preso a um labirinto de rede que lhe recorta o espaço em quadrículas de vento. Na ausência de um par de asas, serve de leiteira à chuva e às folhas que lhe caem no colo, colo de casa cantante a quem o silêncio confirma a impossibilidade de haver quem alimente fantasmas de pássaros à janela de um quarto só de cabeceira de cama, encostada aos nervos de uma trepadeira que amortalha os risos de quem ali foi menina.

Adiante ainda, partes de laranjas tingidas de tristeza em campo aberto, por onde os meus pés passam, sem que haja neles a culpa dos corpos pequenos que o meu peso enterra no chão; ao chegar, cinquenta anos depois do incêndio, a um chão colhido de lilases, pedras deixadas ao musgo e azulejos partidos, uma sinfonia de salas vazias, heras e altares onde a fé chegou para o apocalipse de uma única família em menos de uma hora de pródigas chamas. Aparato nunca antes concebido pela escadaria de pedra que verte os dissabores da fé sobre um quintal de cerejeiras, a quem corvos fazem frente pelo domínio sobre a cor; sem que de luto se tinja o que aqui chegou: uma história inventada e o melhor dos cenários que Tarkvosky jamais imaginou.

Sobre um dos quartos, oculto sob a sombra marítima de uma árvore, confinada à travessia das portas e janelas, um corpo de ferro abre-se ao céu, indiferente ao povoamento de pétalas azuis que lhe cobrem a boca, esperando por lume, um pouco mais de mãos que lhe cozinhem, sobre o rosto, a hora certa das refeições diárias. Enquanto o equilibrismo mudo das pedras armadilha este espaço de estranhos entre estranhos, acotovelando-se por um pouco mais de lilás, que lhes chegaria para este imenso desejo de beleza.

- Beatriz Hierro Lopes

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