terça-feira, março 05, 2013

Um outro nascimento


Todo o meu ser é um cântico negro
que ao repetir-te em si mesmo te levará
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
Sussurrei-te neste cântico, ah,
acrescentei-te neste cântico
à árvore e à água e ao fogo

  *  *  *

Talvez a vida
seja uma rua comprida pela qual passa todos os dias uma mulher segurando um cesto
Talvez a vida
seja uma corda com a qual um homem se enforca num ramo
Talvez a vida seja uma criança a regressar a casa da escola

Talvez a vida seja acender um cigarro na pausa narcótica entre dois abraços
ou o trânsito ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um "bom dia"
Talvez a vida seja esse momento vedado
em que o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
E nisto reside uma sensação
que eu misturarei à impressão da lua e à descoberta da escuridão

Num quarto do tamanho de uma solidão
o meu coração
do tamanho de um amor
contempla os simples pretextos da sua felicidade,
o murchar da beleza das flores na jarra
a jovem árvore que plantaste no jardim da nossa casa
o canto dos canários
que entoam a medida de uma janela

Ah
Eis a minha sina
Eis a minha sina
A minha sina
é um céu que a queda de uma cortina me furta
A minha sina é descer umas escadas abandonadas
e encontrar algo em putrefacção e exílio
A minha sina é um passeio angustiado pelo jardim das memórias
e entregar a alma à tristeza de uma voz que me diz:
"Eu amo
as tuas mãos"

Planto as minhas mãos no jardim
Hei-de vicejar, eu sei, eu sei, eu sei
e as andorinhas hão-de pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta

Penduro nas minhas orelhas brincos de cerejas gémeas
e enfio pétalas de dália nas minhas unhas
Há uma viela
onde os rapazes que me amaram,
com o mesmo cabelo despenteado,
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras,
pensam ainda nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento certa noite

Há uma viela que o meu coração
roubou aos cenários da minha infância

A viagem de uma forma pela linha do tempo,
fecundando a linha estéril do tempo com uma forma,
uma forma consciente de uma imagem
a regressar do festejo de um espelho.
E é assim
que alguém morre
e alguém permanece

Nenhum pescador procurará jamais uma pérola
num pequeno regato que se esvazia numa valeta

Eu
conheço uma fada pequena e triste
que instalada no oceano
toca o coração numa flauta de madeira
baixinho, baixinho
uma fada pequena e triste
que com um beijo morre todas as noites
e com um beijo renascerá a cada amanhecer

- Forough Farrokhzad
(tradução de Vasco Gato)

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