sábado, março 02, 2013

Última


                Concedeu-me a experiência
esta clássica ignorância
que não possui fragrância
do primeiro não saber.
Oh a ciência de inocência!
Oh a vida empedernida!...
Desde o princípio da vida
nada fiz senão perder.

                Já tenho os olhos manchados
de ver tudo quanto é feio.
Não cria... E agora creio
em tudo e em algo mais.
Quis, é certo, tudo ser
e se algo sou já nem sei...
Porém nunca acreditei
nos que m gabam, jamais.

                Escritor irremediável,
tenho a obsessão maldita
de tão vil palavra escrita
neste odioso papel.
E meu engenho — o admirável! —
de meu martírio se cria...
Dele e da neurastenia
levo a alma à flor da pele.

                Magoado, mas sem dores.
Amoroso, sem mulheres.
Libertino, sem prazeres,
rendido, sem competir.
Ando, amante sem amores,
de juventude apodrecida,
pela feira desta vida,
sem chorar e sem me rir.

                A glória... — para amanhã!
E o dinheiro? Eu não quero
prazeres pelo meu dinheiro...
Minha vontade... É verdade!
Tudo se ganha, se é sã;
rasa montes, seca o mar...
Mas só parvos pude achar
entre os que têm vontade.

                E agora, a meio do caminho,
também me cansa o acaso.
... Perdi o ritmo de meu passo,
estou farto de caminhar.
A vontade e o destino
daria eu por coisa pouca...
— E eu...
                          — Cala-te. A tua boca
é somente pra beijar!

- Manuel Machado
(tradução de José Bento)
in Alguns cantares, Cotovia

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