O COMENTÁRIO POLÍTICO E A IDIOTIA
Um dos paradoxos do nosso tempo pode ser formulado desta maneira: ao mesmo tempo que os géneros jornalísticos tradicionais estão em crise e os jornais entraram numa fase de estertor, o jornalismo triunfa por todo o lado. Ele devorou grande parte da literatura – essa grande prostituta, por conta da “reportagem universal” – e engole como um ogre a política. Segundo um novo hábito em expansão, quem saiu de cena como político reentra e recicla-se como comentador. A esta legião de comentadores frenéticos e eloquentes, juntou-se esta semana, depois de uns anos sabáticos na gestão empresarial, a figura de Jorge Coelho. O ritual reiniciático que a SIC lhe proporcionou começou com um anúncio promocional que o coloca em pose de pensador, ornado de espírito e de interioridade reflexiva, sublimado por uma nauseabunda estetização. Lateralmente, noticia-se que “Jorge Coelho volta à política”, o que significa: sub specie commentatoris. E o próprio comenta, em preâmbulo a todos os seus comentários futuros: “Está a saber-me bem”. A televisão – e todo o jornalismo de largo espectro a que ela passou a servir de modelo – acredita que pode fabricar um intelectual do comentário político a partir de matéria-prima tão escassa como é a cabeça pensante de Jorge Coelho (que, não sejamos injustos, está à altura de grande parte dos seus colegas de ofício). Temos de concluir que a actualidade do vienense Karl Kraus, na sua luta contra os processos jornalísticos de fabricação da “opinião pública”, se mantém intacta, um século depois. E a estes processos chamava ele “corrupção”, que é uma palavra hoje reservada para aquilo que os media denunciam, mas não para o que eles realizam, por exemplo ao iludirem – e eludirem – a incompatibilidade fundamental (sobretudo quando é praticada em larga escala) entre o exercício do comentário político e a função que, fora dele, desempenham os seus oficiantes. Mas o que é, afinal, essa “ciência” do comentário político, tal como ele é praticado? Trata-se de um discurso parasitário que reduz a política a mera gestão (isto é, que a confirma e conforta naquilo em que ela de facto se tornou), onde se fazem análises e profecias que não saem do jogo das tácticas e das estratégias. É tudo um jogo, no qual os comentadores falam de um lugar em que se representam como detentores do monopólio da objectivação pública. A resposta a dar-lhes deve consistir em tornar a lógica deles reversível, isto é, em objectivar os detentores do monopólio da objectivação. Devemos então começar por verificar que aquilo a que eles se dedicam e a que chamamos comentário tem o alcance de uma estereotipada fraseologia. A fraseologia define-se pela elaboração de um discurso vazio, mas que “pega”, como se costuma dizer, por via de um certo uso da frase: o comentário político tem na frase ( e não na elaboração argumentativa mais longa) a sua unidade linguística de “pensamento”. Por isso é que os comentadores fornecem sempre frases para serem citadas no dia seguinte (veja-se o caso de Marcelo Rebelo de Sousa). Sabemos, pelo menos desde Flaubert e do seu Dictionnaire des idées recues, que aquilo a que ele chamou a bêtise, e que podemos traduzir por “estupidez”, reside na frase, no modo como ela se presta à repetição vazia. E foi a pensar precisamente na frase (a proferição eufórica que, em última análise, se traduz sempre por um “aqui estou eu”), enquanto modalidade essencial da estupidez, que Marx escreveu uma vez que esta é o direito consuetudinário de uma opinião.
- António Guerreiroin Ípsilon (22.03.2013)
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