sexta-feira, março 01, 2013

Noite em claro

Aos poetas André Breton
e Benjamin Péret

Às dez da noite no Café de Inglaterra
à parte nós os três
                                 não havia ninguém
Ouviam-se lá fora os passos húmidos do outono
passos de um cego gigante
passos de bosque chegando à cidade
Com mil braços com mil pés de névoa
rosto de fumo homem sem rosto
o outono marchava até ao centro de Paris
com firmes passos de cego
As pessoas passeavam pela grande avenida
alguns com um gesto furtivo arrancavam o rosto
Uma prostituta bela como uma papisa
atravessou a rua e desapareceu num muro esverdecido
a parede voltou a fechar-se
Tudo é porta
basta a leve pressão de um pensamento
Algo se prepara
                               disse um entre nós

Abriu-se o minuto em dois
li sinais no rosto desse instante
Os vivos estão vivos
andam voam amadurecem estalam
os mortos estão vivos
oh ossos seja como for febris
o vento agita e dispersa-os
cachos que caem entre as pernas da noite
A cidade abre-se como um coração
como um figo a flor que é fruto
mais desejo que encarnação
encarnação do desejo
Algo se prepara
                               disse o poeta

O mesmo outono vacilante
este mesmo ano enfermo
fruto fantasma que resvala entre as mãos do século
ano de medo tempo de sussurro e mutilação
Ninguém tinha rosto nessa tarde
no underground de Londres
Em lugar dos olhos
                                     abominação de espelhos cegados
Em lugar dos lábios
                                       linha de apagadas costuras
Ninguém tinha sangue ninguém tinha nome
não tínhamos corpo nem espírito
não tínhamos rosto
O tempo dava voltas e voltas e não passava
não passava nada senão o tempo que passa e regressa e não passa
Apareceu então o casal adolescente
ele era loiro «dardo de Cupido»
boné cinzento pardal vagabundo e valente
ela era pequena sardenta ruiva
maçã sobre uma mesa de pobres
pálido ramo num pátio de inverno
Garotos ferozes gatos selvagens
duas sarças ariscas enlaçadas
duas sarças com espinhos e flores súbitas
Sobre o colo dela a cor do morango
resplandecia na mão do rapaz
as quatro letras da palavra Amor
em cada dedo ardendo como astros

(A-M-O-R)

Tatuagem escolar tinta da china e paixão
anéis palpitantes
oh mão colar no pescoço ávido de vida
presa de pássaro e cavalo sedento
mão cheia de olhos na noite do corpo
pequeno sol e rio dos séculos
o rio dos signos
Vê correr o rio dos astros
abraçam-se e separam-se voltam a juntar-se
falam entre eles uma linguagem de incêndios
as suas lutas seus amores
são a criação e a destruição dos mundos
A noite abre-se
                             mão imensa
constelação de sinais
escrita silêncio que canta
séculos gerações eras
sílabas que alguém diz
palavras que alguém ouve
pórticos de pilares transparentes
ecos ligações senhas labirintos
O instante pestaneja e diz algo
escuta abre os olhos fecha-os
a maré levanta-se
                                  Algo se prepara

Dispersamo-nos na noite
os meus amigos afastam-se
levo as suas palavras como um tesouro ardendo
Lutam o rio e o vento outonal
luta o outono contra as casas negras
Ano de osso
pilha de anos mortos e cuspidos
estações violadas
século talhado num uivo
pirâmide de sangue
horas roendo o dia o ano o século o osso
Perdemos todas as batalhas
todos os dias ganhamos uma
                                                       Poesia

A cidade solta-se
seu rosto é o rosto do meu amor
as suas pernas são pernas de mulher
Torres praças colunas pontes ruas
rio cinto de paisagens afogadas
Cidade ou Mulher Presença
leque que desvenda e oculta a vida
bela como a revolta dos pobres
teu rosto delira mas nos teus olhos bebo delicadezas
tuas axilas são noite mas teus seios dia
tuas palavras são de pedra mas a tua língua é chuva
tuas costas são o meio-dia no mar
teu sorriso o sol a entrar nos subúrbios
teu cabelo ao soltar-se a tempestade nos terraços da alba
teu ventre respiração do mar a pulsação do dia
tu chamas-te torrente e chamas-te pradaria
tu chamas-te preia-mar
tens todos os nomes da água
Mas o teu sexo é inominável
o outro rosto do ser
o outro rosto do tempo
o revés da vida
Aqui termina todo o discurso
aqui a beleza não é legível
aqui a presença torna-se terrível
dobrada sobre si mesma a Presença é vazio
o visível é invisível
aqui a estrela é negra
a luz é sombra brilha a sombra
Aqui o tempo fixa-se
os quatro pontos cardeais tocam-se
é o lugar solitário o lugar do encontro

Cidade Mulher Presença
aqui termina o tempo
aqui começa

 - Octavio Paz

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