quinta-feira, março 14, 2013

Morrer não custa (4)


O outro disse:
«A barca d'amor
Encalhou d'encontro
                                     à vida quotidiana.»

O outro disse:
«Os homens estão sós, no coração do mundo

Atravessados por um raio de sol,
E logo anoitece.»

Qual raio de sol, qual barca do amor!
Porque me parece que estive dois anos numa casa, fechado
              a apanhar porrada, com porcaria por todo o lado,
Porque me parece que não há por aqui uma cama decente
Para um amante se deitar com quem ama;
Porque me parece que há um círculo de tipos que se aperta,
Segundo o método PERT,
E que esses mesmos me fazem perguntas num quarto
              friíssimo;
E, olhados, têm um ar de tal e qual caras,
Mas são, mais atentamente vistos, um quarto frio e
               perguntas a toda a volta
Porque estes tão rigorosamente nossos semelhantes
São serpentes que nos prendem com os olhos
E levam os nossos bocados de aqui para fora.
Voltaram os heróis da finança à terra
E os seus pequenos imitadores saltam dos próprios bolsos
              cheios de propósitos.
Ando por todo o lado a apanhar bocados.


- Manuel Resende
in Natureza morta com desodorizante, Imprensa Nacional

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