domingo, março 17, 2013


A luz sai pedindo licença e deixa
a tarde ao cuidado de jardins errantes
com o lume dos pássaros nas ramagens,
a vegetação armada e a sua munição
de flores, e desses muros escalavrados que,
entre a fúria dos cartazes, fixam narrativas
fulgurantes a partir de inscrições mutiladas,
cemitérios de nomes
e alguma lagartixa.

Lisboa é ainda o pior dos séculos.
Ensinou-te, assim mesmo, o andar ágil
dos vadios de antigamente, este ritmo
seguindo ileso entre as notas sujas que
o vento arranca a cordas feridas.

Algum café e a sua vulgar eternidade
onde sobram figuras de recortar entre
a sede e o tédio. Do mesmo prato
comem deuses, homens e bestas
,
numa intimidade incrível. Sombriamente
debruçados, reproduzimos o morse
burilado nestas mesas. E nalgum canto
soluça um acordeão que conduz
uns gestos cegos e acenos ao sinalizarmos
um perfume solitário de não se sabe quem.
Algum truque das obscenas donzelas
que nos puxam para este ballet parado
entre o amor e o desdém: as juras
nocturnas que a manhã não cobre
e os beijos de socorro que imploramos.

Tens a tua cercada – mas, aqui, a corte
é coisa para levar entre meses e décadas.
Ensinas as sombras a puxar-lhe os fios
do vestido, revelar-te mais desse contorno
que vens copiando à mão: o desenho lento
da boca, os lábios enegrecidos de tanto
discutir preços, e aqueles dois
olhos claros que te parecem às vezes
frios, cobrindo-se já de formigas.

O mundo tem-te aí de castigo, e ouves
como chove ainda na tua infância,
e um vento sem direcção te devolve,
passados anos, ecos já mortos.
Recolhes os papéis e tomas caminho.

A luz gelada dos candeeiros ainda
recorta uns vultos contra fundos
esbatidos. Trazes a voz uns passos mais
atrás, a maltratar uma canção enquanto
inventa ruas e te empurra para debaixo
das arcadas, onde os capitães do fim
compõem o papelão e reerguem o seu
hotel de grilos e constelações.

De regresso vens a estudar as janelas,
sinais de presença e do mais. (Há horas
no mundo que pertencem a tão poucos,
a esta raça infalível – àqueles de nós que já
não somos apenas os últimos dos últimos
mas os primeiros do que está por vir.)

Procuras as chaves, encontras e abres
a doce cela onde, enfim, vens bater
com os ossos. Teu quarto minúsculo,
a cada noite mais estranho e
inclinado, tudo chegado à tua enorme
janela, rasgada. Aqui e ali, moscas e astros
poisando entre os versos do imenso poema
que cobre estas paredes, onde os sonhos
deixaram as unhas e bizarros abecedários
com raízes fundas que trepam, florescem
e as estalam abrindo passagem.

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