domingo, março 17, 2013



O MUSEU, ESSA COISA NEFASTA

Umas centenas ou milhares de berlinenses manifestaram-se na semana passada contra a destruição de um troço do muro que dividiu a cidade, um dos poucos que ainda restam, tendo-se tornado uma “galeria” a céu aberto (foi aí que um artista russo fez uma pintura mural do célebre beijo de Brejnev a Erich Honecker). Uma análise fria, objectiva, mas incapaz de iluminar o que está aqui em questão, concluirá que não há nenhuma razão para defender a preservação do muro, a não ser tendo em conta que a conservação se tornou um dogma: ele foi uma ferida violenta infligida à cidade, não é um monumento, não tem valor artístico e não tem um valor de antiguidade. Mas tem uma coisa que é hoje dotada de um enorme prestígio: é um lugar de memória, para usar uma noção já com pergaminhos, que pertence à mesma família da tão aclamada “memória colectiva”, como se houvesse um sujeito colectivo com a função de recordar. Sendo, em si mesmo, um memorial, ele satisfaz esse intenso desejo de história e de aura que leva a que até o passado recente, ainda contemporâneo, se tenha tornado objecto de arqueologia. É esse “valor de rememoração”, como lhe chamou Alois Riegl num livro do início do século XX que se tornou célebre (O Culto Moderno dos Monumentos) que os berlinenses parecem querer preservar. Um valor que, de resto, não pode ser desligado de uma expressão que se afirmou também na Alemanha: a “política da história”. Mas Berlim já tem o seu “memorial” do muro, numa das ruas por onde ele passava (a Bernauerstrasse): é uma obra que ocupa uma grande extensão e que compreende várias modalidades artísticas: arquitectura, escultura, intervenção artística na paisagem urbana. Ao longo de mais de um quilómetro, o turista que corre pelos museus com um elevado grau de insónia pode celebrar o culto da memória do muro. Tal memorial é feito exclusivamente para turistas. Um berlinense pode vir manifestar-se diante do troço de muro ainda em pé para defender a sua preservação, mas não terá certamente muita vontade de percorrer aquele “memorial”, exacerbadamente “artístico”, onde o betão e o ferro do muro real são tão sublimados que não há quem os vislumbre. Ali, tudo é sublimação: do muro, não existe senão um eco longínquo, já que o “memorial” parece subtraído ao movimento da vida e do tempo histórico. Compreende-se porquê: o muro tinha muito pouco de objecto museável e nenhuma graciosidade monumental. E o que é preciso, como acontece hoje a tudo nas cidades históricas, é fazê-lo entrar na categoria do museu, já que é de facto para o museu que foi retirado tudo o que tem que ver com a tradição e a vida do espírito. Assim se cumpre o desígnio da musealização do mundo, ou seja, da exposição sub specie aesthetica de tudo o que já fez parte da vida. Eis a estética como factor de anestesia. Eis o museu a elevar o Kitsch à máxima potência e a retirar à arte e à cultura todo o efeito. A este propósito, devemos recordar um pequeno apontamento onde Walter Benjamin diz que o passado deve ser salvo não tanto do esquecimento e do desprezo, mas mais de um determinado modo de o transmitir: aquele que consiste em considerá-lo como uma “herança”, imobilizada num culto, onde se investem mil cuidados para não interromper a tradição. Este modo de considerar o passado, acrescenta Benjamin, é mais nefasto do que poderia ser o seu desaparecimento.

- António Guerreiro
in Ípsilon (15.03.2013)

Sem comentários: