Umas centenas ou milhares de berlinenses
manifestaram-se na semana passada contra a destruição de um troço do muro que
dividiu a cidade, um dos poucos que ainda restam, tendo-se tornado uma
“galeria” a céu aberto (foi aí que um artista russo fez uma pintura mural do
célebre beijo de Brejnev a Erich Honecker). Uma análise fria, objectiva, mas
incapaz de iluminar o que está aqui em questão, concluirá que não há nenhuma
razão para defender a preservação do muro, a não ser tendo em conta que a
conservação se tornou um dogma: ele foi uma ferida violenta infligida à cidade,
não é um monumento, não tem valor artístico e não tem um valor de antiguidade.
Mas tem uma coisa que é hoje dotada de um enorme prestígio: é um lugar de
memória, para usar uma noção já com pergaminhos, que pertence à mesma família
da tão aclamada “memória colectiva”, como se houvesse um sujeito colectivo com
a função de recordar. Sendo, em si mesmo, um memorial, ele satisfaz esse
intenso desejo de história e de aura que leva a que até o passado recente,
ainda contemporâneo, se tenha tornado objecto de arqueologia. É esse “valor de
rememoração”, como lhe chamou Alois Riegl num livro do início do século XX que
se tornou célebre (O Culto Moderno dos
Monumentos) que os berlinenses parecem querer preservar. Um valor que, de
resto, não pode ser desligado de uma expressão que se afirmou também na
Alemanha: a “política da história”. Mas Berlim já tem o seu “memorial” do muro,
numa das ruas por onde ele passava (a Bernauerstrasse): é uma obra que ocupa
uma grande extensão e que compreende várias modalidades artísticas:
arquitectura, escultura, intervenção artística na paisagem urbana. Ao longo de
mais de um quilómetro, o turista que corre pelos museus com um elevado grau de
insónia pode celebrar o culto da memória do muro. Tal memorial é feito
exclusivamente para turistas. Um berlinense pode vir manifestar-se diante do
troço de muro ainda em pé para defender a sua preservação, mas não terá
certamente muita vontade de percorrer aquele “memorial”, exacerbadamente
“artístico”, onde o betão e o ferro do muro real são tão sublimados que não há
quem os vislumbre. Ali, tudo é sublimação: do muro, não existe senão um eco
longínquo, já que o “memorial” parece subtraído ao movimento da vida e do tempo
histórico. Compreende-se porquê: o muro tinha muito pouco de objecto museável e
nenhuma graciosidade monumental. E o que é preciso, como acontece hoje a tudo
nas cidades históricas, é fazê-lo entrar na categoria do museu, já que é de
facto para o museu que foi retirado tudo o que tem que ver com a tradição e a
vida do espírito. Assim se cumpre o desígnio da musealização do mundo, ou seja,
da exposição sub specie aesthetica de
tudo o que já fez parte da vida. Eis a estética como factor de anestesia. Eis o
museu a elevar o Kitsch à máxima
potência e a retirar à arte e à cultura todo o efeito. A este propósito,
devemos recordar um pequeno apontamento onde Walter Benjamin diz que o passado
deve ser salvo não tanto do esquecimento e do desprezo, mas mais de um
determinado modo de o transmitir: aquele que consiste em considerá-lo como uma
“herança”, imobilizada num culto, onde se investem mil cuidados para não
interromper a tradição. Este modo de considerar o passado, acrescenta Benjamin,
é mais nefasto do que poderia ser o seu desaparecimento.
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